Neste texto da série “Como discernir nosso tempo” trazemos a teologia para o centro da conversa. Antes, precisamos reconhecer que é impossível colocar em um artigo o que teólogos colocam em volumes, tentando cobrir as diferentes facetas do universo da teologia, que se desdobra em variadas abordagens, como sistemática, bíblica, histórica, filosófica, etc.

Reconhecendo nossa limitação, a proposta aqui, então, é levantar algumas questões teológicas que apontem caminhos na tarefa de ler e interpretar os nossos dias. Nesta reflexão temos a gentil participação de Norma Braga, doutora em literatura francesa, mestre em teologia filosófica e consultora de imagem, que contribuiu para o nosso artigo respondendo algumas perguntas por e-mail.

1.

O que queremos dizer por teologia?

Keith Mathison explica [i] que os teólogos reformados do passado definiram a teologia como “uma palavra sobre Deus” baseada na “Palavra de Deus”. Nesse sentido, em sua essência, a teologia é o conhecimento de Deus. Mathison argumenta que a Bíblia nos exorta a conhecer a Deus e crescer nesse conhecimento, o que significa crescer em nossa teologia.

O teólogo Jorge Henrique Barro, por sua vez, enxerga a teologia como caminhos teológicos [ii]. Na visão dele, a teologia é um caminho para o alto, em busca de Deus, que é o centro. É um caminho para o “auto”, em busca de nós mesmos e de nossa identidade, que precisa ser conformada em Cristo. É um caminho para o lado, em busca do outro, do próximo, dos invisíveis, dos desprezados. A teologia é um caminho para dentro da comunidade de fé, em busca do aperfeiçoamento dos santos, pois não existe teologia sem igreja, sem comunhão, e se alguém diz que faz teologia, mas odeia a igreja, há alguma coisa errada nisso.

2.

Teologia para quê e para quem?

Contrapondo o tópico anterior, alguém poderia questionar: para quê teologia se o que eu preciso saber posso encontrar diretamente na Bíblia? A verdade é que muitos cristãos têm pouco ou nenhum interesse em teologia porque acham que não existe conexão entre a teologia e a vida cotidiana. No entanto, mesmo quem que acredita que a teologia é irrelevante, na verdade, está “fazendo teologia”. Inconscientemente, estão fazendo ou reproduzindo um tipo de teologia que potencializa erros teológicos, como o surgimento de falsas doutrinas e heresias.

Outro ponto importante é pensar sobre quem produz teologia e para quem. Keith Mathison explica que todos os cristãos são chamados à teologia – não apenas os acadêmicos, pastores ou líderes, como costuma-se pensar. Na mesma perspectiva, o pastor e teólogo, Jean Francesco, argumenta que, segundo a tradição cristã, a audiência da teologia é a própria igreja de Cristo e que o trabalho teológico depende da revelação divina, ou seja, não é possível fazer teologia à parte da fé. Portanto, a comunhão dos santos (igreja) é o cenário onde a teologia é produzida e, ao mesmo tempo, é o seu público alvo principal [iii].

3.

Teologia como mediadora

O alemão Jürgen Moltmann, conhecido como teólogo da esperança, faz uma colocação interessante para a nossa reflexão. Ele diz: “A mediação entre a tradição cristã e a cultura do presente é a tarefa mais importante da teologia. Sem uma relação viva com as possibilidades e problemas do homem ou da mulher do presente, a teologia cristã torna-se estéril e irrelevante. Mas sem referência à tradição cristã, a teologia cristã torna-se oportunista e acrítica”.

Essa mediação descrita por Moltmann entre Escrituras Sagradas, tradição cristã e cultura do presente, nos leva em direção ao que se chama teologia pública, um campo que reflete sobre o que a teologia tem a dizer para e sobre os problemas do cotidiano das pessoas e sobre a sociedade.

Neste sentido, Susan Codone, diz que a teologia pública é um esforço proposital para colocar nossa fé na praça. “Atuar como teólogo público significa que deixo intencionalmente minha teologia informar minhas experiências pessoais para me envolver publicamente em questões sociais. Minha fé não é mais exclusivamente um diálogo interno com Deus, mas sim uma conversa pública entre mim, Deus e a sociedade.”, escreve Codone [iv].

Percebemos, então, que a teologia tem uma competência específica na tarefa de municiar a igreja para ler os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal maneira que possa responder a cada geração, sobre o significado da vida presente e futura e de suas relações mútuas. Por meio de um diálogo constante com áreas do conhecimento, a teologia pode ajudar a igreja a ver a importância dos acontecimentos e tendências da história humana, e discernir as formas através das quais o Espírito possa estar falando para a igreja e para o mundo. [v]

4.

A igreja brasileira e suas questões teológicas

Jorge Henrique Barro é enfático ao dizer que um dos grandes problemas da igreja evangélica brasileira diz respeito à teologia. Ele escreve: “Eu creio que a maior crise que a igreja evangélica brasileira passa hoje é a crise da ausência de uma teologia séria, biblicamente fundamentada, contextualmente situada. Uma teologia que não busca apenas um diploma, mas como uma aspiração pelo caminho de Cristo.”

Pedro Dulci faz uma crítica na mesma direção de Barro e afirma: “A anemia teológica que a igreja evangélica brasileira vive é uma consequência natural da busca ingênua que os seus líderes insistem com os valores e parâmetros administrativos e terapêuticos — que nunca conseguiram acrescentar relevância a um ofício que, por natureza, precisa ser teológico!” [vi]

A teóloga Norma Braga, por sua vez, diz que enxerga com preocupação um movimento crescente, principalmente na internet, de afirmação da masculinidade e da feminilidade “bíblicas”, mas que apresenta pouca Bíblia e muitas preferências culturais e pessoais elevadas à condição de normatividades. Ela comenta que o combate ao feminismo tem adquirido um teor nada bíblico nos últimos anos e que, por isso, é necessário rever as ideias sobre a mulher, muitas delas consideradas erroneamente bíblicas. Se faz necessário considerar, segundo Braga, tanto o perigo do feminismo como o conservadorismo que idolatra o princípio de autoridade masculina.

A teóloga pontua que, independentemente das épocas, é importante falar sobre a beleza de quem Deus é, a beleza da criação que reflete Sua beleza, a beleza do que Cristo fez em nós e a beleza que Deus está construindo em nossa vida a partir da redenção. Ela vê como fundamental que a criação e a redenção sejam tão enfatizadas quanto a queda, pois falar predominantemente do pecado sem exaltar a santidade de Deus — e sua obra santificadora em nós — pode levar os crentes ao desânimo.

Norma Braga conclui deixando uma advertência e dicas. Ela diz que a teologia não pode descartar as análises de autores de outras áreas, mas, ao mesmo tempo, precisa manter olhos e pés firmes na Escritura, pois examinar a realidade somente a partir de outras cosmovisões que não a cristã pode levar a grandes erros. Braga indica a Teologia Sistemática de John Frame para uma análise da realidade sob três aspectos: normativo, situacional, existencial. “O equilíbrio que encontro em suas obras, bem como a humildade epistemológica que ele demonstra, têm sido muito úteis para meu trabalho no Teologia & Beleza”, finaliza a teóloga.

5.

O perigo que ronda a teologia e os teólogos

Um dos perigos sutis para quem mergulha no universo teológico é perder de vista a diferença entre conhecer temas teológicos e conhecer Deus. É muito fácil confundir concordância cognitiva com a fé cristã, confundir acreditar em Deus com acreditar em ideias sobre Deus. Esse perigo foi alvo de críticas do filósofo e teólogo Soren Kierkegaard. Adam Neder explica que a luta dele era contra o mau uso da doutrina para apoiar um cristianismo intelectualizado que escapa às exigências do discipulado. [vii]

Ao mesmo tempo em que reconhecemos o valor e a importância da teologia como instrumento e ferramenta para nos ajudar na tarefa de discernir nosso tempo, precisamos destacar que exercício teológico, bem como os frutos dele, não podem ser desconectados da vida pessoal cotidiana do cristão. Portanto, para finalizar, faz sentido reproduzir as palavras de David W. Congdon e W. Travis Mcmaken:

“A teologia é menos sobre o quê e muito mais sobre o como. Somos chamados como cristãos a não aderir a uma determinada declaração doutrinária, mas a seguir um certo modo de vida. Ser um crente ponderado é ser comissionado para uma vida de reflexão disciplinada em conversa com os profetas, apóstolos e teólogos que refletiram sobre Deus no passado e cujo legado herdamos. O objetivo não é simplesmente repetir as palavras que eles usaram para proclamar o evangelho em seu tempo e lugar, mas pensar sob sua tutela sobre quais palavras devemos usar hoje.” [viii]


[i] Por que estudar teologia
[ii] Os caminhos da teologia
[iii] Para quem fazemos teologia
[iv] Public Theology Isn’t Just for Academics
[v] Theology Today: Perspectives, Principles and Criteria
[vi] Por pastores que também são mestres
[vii] Theologians: Don’t Lose Sight of Theology’s Most Basic Task
[viii] Ten Reasons Why Theology Matters