Por Phelipe Reis
Cerca de dez meses atrás, numa noite de um domingo normal, enquanto algumas poucas pessoas organizavam e ensaiavam o que aconteceria durante o culto, dezenas de outras espalhadas no pátio, hall, corredores e estacionamento da igreja, conversavam, davam risadas, oravam e compartilhavam sobre a vida. O espaço da igreja era um ambiente para adoração, comunhão e cuidado.
Mas a pandemia surgiu e mudou tudo. Quem imaginava que 2020 nos colocaria de joelhos diante das telas? Sem aviso prévio e sem permitir planejamentos, um vírus obrigou as igrejas a abandonarem os encontros presenciais, os apertos de mãos e abraços, os momentos de louvor em comunidade e a celebração da Ceia com a família da fé. Na maioria das igrejas, as atividades passaram a ser mediadas pelas telas. Afinal, diante de um vírus que se espalha de forma assustadora, é um bom testemunho que as igrejas sigam as recomendações das autoridades sanitárias, evitando aglomerações e cumprindo o distanciamento ou o isolamento social.
Neste contexto, como os fiéis podem manter viva a comunhão sem o calor humano dos encontros presenciais? É possível cultivar uma espiritualidade saudável quando as plataformas virtuais passam a mediar boa parte das atividades promovidas pelas igrejas? O espaço físico é dispensável? Posso ser cristão sem precisar ir à igreja?
Templo, igreja e pessoas
Entre os “desigrejados” – termo usado para se referir a pessoas que, por motivos diversos, decidiram cultivar a vida cristã sem vínculo com uma igreja local institucionalizada – é recorrente uma crítica à supervalorização do espaço físico, popularmente chamado de igreja ou templo. Mas o uso dessas palavras de forma intercambiável revela uma certa confusão teológica dos conceitos, consciente ou não. Na verdade, tanto igreja quanto templo têm a ver com pessoas e não com prédio. Já o espaço físico (templo) é um ambiente para servir às pessoas, ou seja, uma estrutura que possibilita a reunião dos cristãos, os momentos de culto comunitário, o ensino da palavra e outras atividades para fortalecimento da igreja (comunidade) e para atender as necessidades das pessoas.
O problema é que por muito tempo, em muitas vertentes do cristianismo, cristalizou-se ou “templocentrismo”, quando o espaço físico (templo) passa a ser o centro da experiência de fé. Em muitos casos, essa mentalidade desemboca num sistema e estrutura burocráticos, com grandes construções que precisam consumir em manutenção boa parte da energia e recursos das pessoas. Por vezes, negligenciando o cuidado pastoral, o discipulado e o cultivo da comunhão. Esse desequilíbrio e inversão de prioridades levanta um questionamento: qual o sentido da existência e manutenção de uma estrutura que em vez de servir às pessoas está apenas se servindo delas?
Do outro lado da via, estão os que se sentiram como um peixe fora d’água por não poderem mais, em meio à pandemia, ir ao culto comunitário na “igreja/templo” aos domingos, como se lhes tivessem arrancado um amuleto. Por trás do costume, pode estar resquícios da ideia que coloca no centro da vida cristã o espaço físico (templo), como se fosse um lugar onde Deus se revelaria de forma especial – remontando ao Tabernáculo do Antigo Testamento. Para o “templocêntrico”, parece impossível vivenciar a fé sem o templo – ideia que não encontra fundamento bíblico, especialmente no Novo Testamento.
O perigo do consumismo religioso
Em meados do segundo semestre de 2020, os cultos presenciais voltaram a acontecer em algumas cidades que flexibilizaram as restrições de isolamento. Mas após alguns meses em casa, podendo escolher à vontade diante de tantas ofertas de cultos e pregações on-line, por que ir à igreja? Por que ir ao “templo”, se no conforto do sofá da sala posso escolher o pregador de minha preferência, sobre o tema que achar mais interessante, sem ter que lidar com o desconforto ou a dificuldade de compartilhar a vida com pessoas?
Aqui surge um elemento essencial da igreja, como corpo de Cristo. O culto até acontece satisfatoriamente de forma on-line, com a fácil reprodução do momento de louvor e da pregação. Mas o senso de comunidade, pertencimento e conexão pessoal são coisas que não conseguem ser reproduzidas numa sala do Zoom ou numa live pelo Facebook ou no Youtube. Este fato coloca em cheque a ideia de que o culto promove a comunidade. A realidade é que a comunidade é a sustentação do culto e o que muitos acham “periférico”, na verdade, é o mais importante.
John Stott destaca que o Novo Testamento retrata a igreja, como sociedade divina, por meio de muitas metáforas que expressam vida e participação. A verdade é que a igreja cristã é maior família do mundo, a única comunidade multirracial, multinacional e multicultural existente, e, por isso, a maior impossibilidade sociológica do mundo, segundo a antropóloga Margaret Mead. Karen Bomilcar enfatiza que a fé cristã é relacional e comunitária, é pessoal, mas não privada. “Precisamos uns dos outros para crescer. É desejo de Deus que estejamos todos reunidos em nossa diversidade, promovendo unidade, sendo instrumento e um sinal visível com a missão de levar a luz de Cristo a todos os homens. Isso pode incluir a localização como uma referência, mas transcende a noção de lugar.” afirma Bomilcar.
Em isolamento e entre telas, há caminhos para a verdadeira comunhão?
A pandemia é um convite à criatividade das igrejas. Pastores e líderes precisam buscar sabedoria para cultivar a comunhão em suas comunidades em tempos pandêmicos. Michelle Van Loon, escrevendo sobre este desafio, diz que “quando somos forçados a nos distanciar fisicamente, podemos descobrir, de novas maneiras, que nunca fomos feitos para ser consumidores no corpo de Cristo.” Marcos Zapata, pastor em Lugo, Espanha, diz que líderes cristãos precisam usar esta crise para repensar a igreja do ponto de vista comunitário, e acrescenta: “O centro não é o culto, ou a reunião de domingo, mas Cristo. Quando esta crise terminar, será importante retornar num formato que enfatize o compromisso pessoal e ponha um fim ao consumismo religioso.”
Se há caminhos para promover comunhão em tempos de isolamento e mediação por telas? Podemos dizer que estão por serem construídos. Pastores e líderes precisam estar com os ouvidos atentos e o coração sensível às necessidades físicas, emocionais e espirituais dos membros de suas comunidades. Por mais eficiente que seja a reprodução de atividades on-line, nada substituirá o contato face a face. É preciso tentar diminuir essa deficiência, por meio de telefonemas ou mensagens pessoais, tirando do anonimato os nomes por trás dos cliques.
Quando for possível o retorno às atividades coletivas, pastores e líderes poderão se deparar com aqueles que estarão superansiosos para o reencontro, alguns desanimados e outros até com medo de serem contaminados. Apesar disso, dentro de cada um há algo inerente ao ser humano: a necessidade de relacionar-se com outras pessoas. Para os cristãos, trata-se da comunhão com os santos, sem a qual a igreja não sobrevive e para a qual pode-se fazer uso de qualquer artifício, seja tela ou “templo”. Essa compreensão nenhum cristão pode perder vista, pois a comunhão é a trilha onde caminhamos, de mãos dadas, perseverando na doutrina dos apóstolos, no partir do pão, nas orações e no amor sacrificial.