“Você não manda em mim”. Esse é o novo grito revolucionário pós-moderno dos indivíduos e massas, que reivindicam o direito de viver de acordo com as suas próprias maneiras de ver o mundo. Para Zygmunt Bauman, essa aparente autonomia é uma espécie de fluidez nas relações, que não dependem mais de uma narrativa maior.

Após séculos de colonização, querer impor padrões culturais ou religiosos é considerado opressivo, abusivo e moralmente condenável para grande parte do mundo. Grupos não cristãos estão se tornando cada vez mais resistentes, não ao evangelho, mas à imposição do modo cristão de ver o mundo. Em muitos casos, o evangelho nem sequer está sendo ouvido.

Como se posicionar numa sociedade marcada fortemente por este pluralismo cultural? Qual o limite da concessão e da tolerância quando vários grupos querem fazer prevalecer suas visões de mundo? Como essa compreensão da realidade está minando a base das missões cristãs e da evangelização?

Relacionamentos baseado na aliança ou no contrato?

Sempre que os escritores do Novo Testamento falavam do reino de Deus, a ideia específica remetia ao conceito de shalom. Para entender o que é shalom se faz necessário entender o conceito de aliança, uma ideia que está no centro das crenças judaicas e cristãs.

Aliança tem a ver com relações recíprocas, mutuamente benéficas e profundamente vinculantes e que integra intimamente todos os participantes. Quando um membro de uma comunidade unida por aliança é afetado, toda a comunidade é afetada, pois na aliança as relações são altamente coletivistas e exigem a renúncia da autonomia.

Nas sociedades industrializadas as relações são compreendidas em termo de contrato, quando se faz um acordo para alcançar um objetivo comum para um benefício mútuo, mas mantendo a autonomia das partes. Uma vez obtido o benefício, ou se as regras do contrato forem quebradas, a relação termina.

É no conceito de relacionamentos baseados na aliança, e não no contrato, que deve permanecer o fundamento da fé, do relacionamento com Deus e da compreensão de como as boas-novas se tornarão conhecidas na Terra.

Um discipulado baseado na autonomia ou na comunidade?

Em Mateus 28.18-20, que recebe o título extra bíblico de Grande Comissão, Jesus confirma a autoridade cósmica que lhe foi dada como Filho do Homem, e dá permissão aos apóstolos para espalhar a notícia do reino de Deus muito além de Israel, em todas as nações. Anteriormente, em Mateus 10.5-6, ele os restringia às ovelhas perdidas de Israel, mas agora essa restrição é retirada. Eles são lançados por toda a terra, são autorizados a ir a qualquer lugar, onde o Espírito os levar, e devem fazer discípulos. Mas o que ele quis dizer com “fazer discípulos”?

Discípulo é outro termo para um seguidor do Senhor Jesus, ou um cidadão do reino de Deus. É aquele que entra em aliança com Deus através da fé em Jesus, ao invés dos ritos de Israel. Neste sentido, é uma nova aliança, onde uma transformação espiritual começa a acontecer e o Espírito Santo de Deus é “ativado” e permanece no novo seguidor de Jesus. O novo crente também passa a estar externamente ligado a um coletivo e torna-se parte do povo de Deus – um todo que é muito maior do que ele mesmo. É uma ligação não apenas espiritual, mas também física, com sua comunidade local.

Amar uns aos outros

Para compreender plenamente a importância das missões, é importante observar a passagem de João 17.18-25 (O Grande Compromisso). Primeiramente, Jesus fala de enviar como ele foi enviado e isso tem a ver com missão. Segundo, esta oração não era apenas para os doze discípulos, mas para todos os discípulos depois disso. Terceiro, a maneira como Jesus foi enviado foi através de uma união amorosa com o Pai. Quarto, a maneira como Jesus nos envia para o mundo é através de uma unidade amorosa com Deus e uns com os outros. Por final, através dessa união de aliança o mundo acreditará e saberá que o amor do Pai enviou o Filho.

A missão de Deus no mundo é cumprida através do nosso amor uns aos outros. A benção de Deus no mundo é liberada através do nosso amor uns aos outros. O reino de Deus se manifesta no mundo quando amamos uns aos outros. A glória de Deus se revela mais no mundo à medida em que amamos uns aos outros. Quando amamos uns aos outros estamos colocando em prática o ministério da reconciliação. É isso que um mundo fragmentado e despedaçado precisa ver. Por isso que a união amorosa dos discípulos de Jesus é uma atividade missionária tão poderosa.

Alan Kreider afirma que o crescimento da Igreja no Império Romano se deu não porque a evangelização era prerrogativa e dever de cada membro da Igreja. Em vez disso, foi principalmente porque os cristãos e suas igrejas viviam um hábito, ou cultura que atraía os outros. O foco dos cristãos não era em salvar as pessoas ou recrutá-las; era viver fielmente – na crença de que quando as vidas das pessoas se habituam ou são adaptadas no caminho de Jesus, outros vão querer se juntar a elas.

Unidade, uniformidade e diversidade

“A evangelização é importante e necessária. Mas ela é muito mais potente quando vem acompanhada do testemunho vivo como uma comunidade amorosa”.

Atrair o mundo com o amor ao próximo não significa parecer e agir todos da mesma forma, numa uniformidade forçada. A unidade na diversidade é um poderoso testemunho da capacidade do Espírito de Deus de formar uma comunidade, reunindo pessoas de diferentes origens, numa interação que gera transformação. A ciência recente da neurobiologia interpessoal vem confirmando como um indivíduo pode ser influenciado e formado pelas pessoas à sua volta. Para quem está em Cristo, isto é um grande benefício, pois faz parte do amadurecimento do cristão.

A unidade amorosa da igreja de Cristo, vivida de forma prática em seus territórios e nações, é um farol, uma luz e uma influência que preserva como o sal. A união de amor da igreja transborda para trazer o melhor à sociedade. Vidas são vividas em humildade e serviço para o bem de todos. O caráter de Deus formado em cada cristão deve causar admiração e atrair outros ao reino de Deus, à medida que a eles é compartilhada a esperança que há em Cristo. Então o mundo crerá e saberá que o Pai amorosamente enviou o Filho, para que qualquer um, sem restrições, possa vir e fazer parte da aliança e da união que há por meio Dele.

*Texto produzido a partir da palestra de Jay Matenga no Encontro Sepal on-line 2020