Entrevista com Norma Braga

Abuso sexual na igreja. Um tema sensível, mas que precisa ser encarado. No final do mês de maio, uma investigação independente confirmou e detalhou acusações de fraude, obstrução e intimidação contra vítimas de abuso sexual, envolvendo parte do comitê executivo da Convenção Batista do Sul (SBC), no Estados Unidos. A investigação documentou episódios em que alguns líderes da SBC encobriram casos e denúncias de comportamento sexual criminoso cometido por pastores e líderes de igrejas vinculadas à SBC.

Pastores e líderes possuem uma responsabilidade diante de Deus para com o rebanho de Jesus, portanto, se faz necessário reconhecer o problema, entendê-lo, trabalhar na prevenção e tomar as medidas necessárias quando os abusos acontecem. Conversamos com Norma Braga, mestre em teologia filosófica, sobre aspectos que envolvem pastores e líderes, como a formação teológica, a tentação do apego ao poder e o estilo de liderança que pode favorecer ou facilitar a acorrência de abusos na igreja. Confira a conversa.

Quais os sinais ou as características de ambientes eclesiásticos saudáveis, capazes de prevenir abusos por parte de todos os que o frequentam?

Norma Braga – Penso que uma das primeiras preocupações deveria ser um treinamento para pastores e líderes ainda em seminário que contemplasse a questão, pois há ainda um desconhecimento enorme do tema. Muitos desprezam até mesmo o termo “abuso” como uma categoria da psicologia secular, ou desconsideram o tema por associá-lo a militância ideológica. No entanto, na esfera eclesiástica é muito importante entender o que significa o abuso espiritual, que é o que possibilita todos os demais: emocional, financeiro, sexual… Todo líder precisa estar bastante alerta contra uma postura de domínio sobre a igreja, não apenas ensinando, mas sobretudo levando a sério a doutrina o ensino bíblico sobre a pecaminosidade humana. Por saberem que são pecadores, falhos e propensos a vários tipos de tentações, líderes saudáveis não aceitarão idolatria a si mesmos nem a seus pares, mas permanecerão atentos a comportamentos inaceitáveis da liderança — intolerância a críticas, rudeza, insultos, fofocas, piadas inapropriadas, indiferença à dor do outro, indisposição para aconselhar, inconsistência entre discurso e prática, tudo isso pode indicar abuso espiritual, produto da soberba. Líderes saudáveis agem não como dominadores (1Pe 5.2-3), mas como protetores dos membros, sabendo que parte importante disso é ouvi-los e abrir-se para aprender com eles, sobretudo mulheres e crianças, que são as vozes menos ouvidas, mas justamente os grupos mais visados por abusadores. Em cada caso, a sensibilidade do líder é fundamental. O bom pastor tem cheiro de ovelha.

Nossas estruturas, modelos e sistemas predominantes de liderança eclesiástica favorecem a ação de abusadores e facilitadores? De que forma?

Norma Braga – A liderança excessivamente centralizada, que não precisa ou evita prestar contas a seus pares ou a instâncias superiores, certamente está mais propensa a abusar ou facilitar abuso. Os que estão mais próximos do líder e não percebem o perigo dessa centralização, mas se beneficiam dela de algum modo, tenderão a facilitar o abuso por silêncio, inação e reforço. A teologia também pode ter um grande papel nisso: quando distorções da Palavra são disseminadas do púlpito para impedir que o líder seja questionado (como “não toqueis no ungido do Senhor”, por exemplo), os demais líderes e os membros dessa igreja se tornam mais propensos a olhar para o outro lado diante de indícios de abuso. Nesse caso, fala-se de “grooming” (aliciamento) de toda a igreja, que de certa forma é preparada para acolher o abuso sem reservas.

O pastorcentrismo” em nossas igrejas, onde o pastor é figura suprema, muitas vezes, sem um grupo ou uma diretoria a quem preste contas, pode ser um fator que potencializa abusos por parte de pastores e líderes? Como evitar isso?

Norma Braga – Certamente! O ideal seria que o pastor sempre tivesse a quem prestar contas. Ele não pode deixar de ter alguém acima dele, que o pastoreie também.

Quais mecanismos as igrejas podem desenvolver para criar ambientes de proteção contra abusos e abusadores?

Norma Braga – Eu poderia citar: boa teologia sobre liderança que se inspire na humildade de Jesus; bom relacionamento entre os líderes, que estimule crescimento espiritual e vigilância contra orgulho; política de transparência (contas, processo de disciplina de abusadores etc.); treinamento específico sobre abuso; como critério de contratação de líderes, valorização do caráter acima de habilidades de ensino e pregação, além de foco no amor e no socorro aos que sofrem. Hoje, vemos que até ambientes de teologia sofisticada podem usar mais o tempo de ensino e pregação para alertar contra os erros da cultura lá fora, ou de outras igrejas e denominações, enquanto certos pecados cometidos no interior da comunidade deixam de ser apontados; isso é um erro e estimula o orgulho espiritual em toda a igreja.

O que podemos aprender sobre os recentes escândalos envolvendo pastores e líderes nos Estados Unidos? Será que há alguma pista que poderia nos levar a boas práticas na conduta de nossas lideranças?

Norma Braga – Nos escândalos, o silenciamento tem sido a maior arma dos abusadores. Deixar de disciplinar e simplesmente “transferir o problema” para outra igreja é algo cruel, pois a chance de reincidência é enorme. Abusadores, principalmente os que forem líderes, precisam ser disciplinados, e quando a disciplina é pública não apenas a igreja é instruída, mas os futuros abusadores são inibidos. O recurso do silenciamento é tão difundido que até mesmo o abuso sexual infantil deixa de ser reportado à polícia porque “irmão não entra na justiça contra irmão” — claramente uma distorção da Palavra. Em caso de crime, a igreja precisa recuar para que o Estado se ocupe do caso; é esfera do Estado, não da igreja. Não há justificativa para abafar crime. A reputação da instituição não pode ser mais importante que conter um criminoso que mata a alma, abusando em nome de Deus. Por isso o líder precisa ter uma compreensão muito clara de que é um servo da igreja, e não dono (Jo 13.14-17).

O que a omissão de uma instituição ou o esforço da mesma em proteger líderes predadores sexuais revela sobre nossos sistemas e instituições eclesiásticas?

Norma Braga – Que precisamos nos arrepender de colocar as instituições acima dos pequeninos por quem Jesus morreu.

Chris Wright afirma que os “ídolos do próprio povo de Deus são os maiores empecilhos para a missão redentora de Deus. Os ídolos do poder e do orgulho, da popularidade e do sucesso, da riqueza e da ganância. Você acredita que esses ídolos se relacionam com casos de abusos sexuais por parte de pastores e líderes? Como se dá essa relação? 

Norma Braga – Sim. Acredito que em ambiente eclesiástico os casos de abuso sexual, seja de crianças, seja de adultos, só têm a ver com desejo sexual secundariamente. O abusador demonstra muita paciência para seduzir sua vítima, às vezes ao longo de anos, cultivando dependência emocional e argumentando falsamente, com o objetivo de ter acesso a seu corpo. A alma é ferida antes do corpo, pois é bem comum que o abusador use a Bíblia para se justificar. Logo, abuso é questão de poder em primeiro lugar, e os demais ídolos — a popularidade, o sucesso, a riqueza e a ganância — são propulsores de poder. Precisamos voltar às origens, compreendendo em profundidade e praticando com sinceridade a liderança humilde e serva do Senhor Jesus, que não usou as ovelhas para seu proveito, mas se sacrificou por elas.

. . .

E-book “Abuso sexual: na minha igreja, não! Como previnir e como agir em caso de abuso sexual na igreja” (EM BREVE)


Por Phelipe Reis, jornalista e colaborador de conteúdo para o site Sepal.