Saúde mental. Eis um assunto negligenciado em boa parte das igrejas. O silêncio sobre o tema alimenta o desconhecimento, os mitos e o preconceito. Mas a realidade que se impõe, especialmente pós-pandemia, mostra com nitidez que é um assunto que as igrejas não podem mais ignorar. Durante a pandemia, a venda de antidepressivos teve uma alta de 17% e, segundo o INSS, o número de afastamentos do trabalho por problemas relacionados à saúde mental cresceu 26% em 2020[i]. É hora de a igreja encarar o tema de frente e se aprofundar nele.
No meio evangélico, fala-se bastante sobre saúde emocional, para se referir a questões como feridas e traumas emocionais, de relacionamentos, etc., que podem ser tratados com aconselhamentos e acompanhamento pastoral, num primeiro momento. Entretanto, quando falamos de saúde mental, estamos nos referindo a algo mais amplo e complexo, que exige atenção de especialistas da área da psicologia e da psiquiatria, para diagnóstico e tratamento. É preciso deixar claro que, neste artigo, nossa abordagem se dá no campo da saúde mental.
Definindo conceitos
Para a produção desta matéria, conversamos com Hadassa Nishihara, psicóloga, psicanalista com Aprimoramento em Clínica das Psicoses e mestranda em teologia pelo Seminário Servo de Cristo. Ela comenta que definir saúde mental é um grande desafio, mas que tem a ver com um nível de bem-estar e de qualidade ambiental para o pleno desenvolvimento de nossas capacidades e relacionamentos, sem o qual sofremos muitos prejuízos, individual e coletivamente.
O conceito mais apresentado sobre o tema é o da Organização Mundial da Saúde (OMS), que diz: “Saúde mental refere-se a um bem estar no qual o indivíduo desenvolve suas habilidades pessoais, consegue lidar com os estresses da vida, trabalha de forma produtiva e encontra-se apto a dar sua contribuição para sua comunidade.”[ii] Nesta perspectiva, não tem a ver com a ausência de doença, mas com o bem-estar físico, mental e psicológico do indivíduo, que vai influenciar diretamente nas emoções e na autoestima da pessoa, bem como na maneira que ela lida com as situações do dia-a-dia.
Falar sobre saúde mental é olhar o ser humano para além do corpo físico e entendê-lo de modo integral, ou seja, como um ser biopsicossocioespiritual. Ao mesmo tempo, é preciso compreender que cada uma dessas áreas, por motivos diversos, pode apresentar distúrbios, como é o caso do transtorno mental. De acordo com a OMS[iii], existem diversos transtornos mentais, com apresentações diferentes. Eles geralmente são caracterizados por uma combinação de pensamentos, percepções, emoções e comportamento anormais, que também podem afetar as relações com outras pessoas. Entre os transtornos mentais, estão a depressão, o transtorno afetivo bipolar, a esquizofrenia e outras psicoses, demência, deficiência intelectual e transtornos de desenvolvimento, incluindo o autismo.
Os números por trás de uma realidade pouco conhecida
Embora ignorados e estigmatizados, ou não diagnosticados corretamente em alguns casos, os transtornos mentais fazem parte da realidade diária de muitas pessoas, dentro e fora das igrejas. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS), cerca de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo têm um transtorno mental e qualquer pessoa, em qualquer lugar, pode ser afetada. Pessoas com transtornos mentais graves, como esquizofrenia, geralmente morrem 10 a 20 anos mais cedo do que a população em geral[iv].
No âmbito das igrejas, um estudo sobre fé e doença mental realizado em 2014 nos Estados Unidos, pela Lifeway Research[v], apontou que cerca de 1 em cada 6 pastores falam sobre doenças mentais uma vez por ano e cerca de um quarto dos pastores relutam em ajudar aqueles que sofrem de doenças mentais agudas porque isso leva muito tempo.
Quando a morte rompe o estigma e impõe o debate
Identificar o desespero que pode acompanhar um transtorno ou doença mental pode ser um trabalho difícil. A tendência humana de evitar o desconforto às vezes significa que aqueles que estão lutando enfrentam um isolamento cada vez maior, quando o que mais precisam é conexão com outras pessoas. Os seguidores de Jesus são chamados a se aproximar, não se afastar, daqueles que precisam de apoio, amor e reconhecimento de que existem e são dignos, independentemente dos desafios que enfrentam.
Em artigo publicado em Christianity Today, Melanie Springer Mock comenta que, para muitas pessoas, o estigma da doença ou do transtorno mental é uma realidade que permanece e que faz muitos sofrerem silenciosamente. “Tendo ouvido que a alegria do Senhor é a sua força ou que eles precisam apenas orar mais para serem curados ou que a felicidade acompanhará os fiéis, muitos que sofrem com transtornos mentais mantêm seus diagnósticos em segredo vergonhoso”, descreve Melanie.[vi]
Um acontecimento que despertou os evangélicos para refletirem e conversarem sobre saúde mental foi o caso de Matthew Warren. Em abril de 2013, aos 27 anos, o filho de Rick e Kay Warren, pastores da Igreja Saddleback na Califórnia, tragicamente tirou a própria vida, após uma longa luta contra uma doença mental. A morte prematura de Matthew levantou a pergunta: como a igreja melhor apoia aqueles que vivem com transtornos e doenças mentais?
Greta Wells, comentando o caso de Matthew Warren no site ABC Religion & Ethics[vii], descreve que várias respostas foram dadas, decorrentes de reflexões teológicas sobre a natureza e o papel do sofrimento, cura, pessoalidade e comunidade. Ela diz que foram respostas animadoras, pois, geralmente, a fonte de ajuda mais procurada, em casos de distúrbios psicológicos, são pastores e líderes da igreja, ao invés de psicólogos ou outros profissionais de saúde mental. Isso implica dizer que, embora pastores e líderes da igreja tenham um papel predominantemente de apoio espiritual, a realidade estatística da doença mental sugere que eles não podem deixar de buscar treinamento e conhecimento nessa área.
Greta salienta que, apesar de pastores e líderes serem solicitados para ajudarem pessoas de suas igrejas que apresentam algum distúrbio emocional ou mental, há um grande problema quando estes possuem uma compreensão teológica que não percebe o ser humano de forma integrada. Nesses casos, há um grande risco de interpretarem mal as questões de saúde mental, olhando apenas pelas lentes da espiritualidade e tratando as pessoas com ferramentas espirituais, como oração e Bíblia. Quando isso ocorre, as causas biológicas e psicológicas dos transtornos não são abordadas e os pastores acabam ficando exaustos ao tentar lidar com situações para as quais não possuem treinamento. Ou ainda, a liderança da igreja simplesmente encaminha as pessoas para serviços externos sem oferecer apoio quando o transtorno mental se torna mais aparente. Não raras vezes, as pessoas acabam sendo demonizadas pela igreja por causa de sua condição mental.
Entre estigmas e equívocos, a Igreja como comunidade terapêutica
É imprescindível mencionar que existem estratégias para a prevenção de transtornos mentais, como a depressão, e que há tratamentos eficazes para os transtornos mentais e maneiras de aliviar o sofrimento causado por eles. A carga dos transtornos mentais continua crescendo, com impactos significativos, em todos os países do mundo, por isso é fundamental o acesso aos cuidados de saúde e aos serviços sociais capazes de proporcionar tratamento e apoio social.
Os laços de comunidade promovidos por uma igreja podem ser inestimáveis para um membro em dificuldades, de acordo com Tara Isabella Burton, em artigo da FOX[viii]. Burton menciona Warren Kinghorn, professor associado de psiquiatria e teologia pastoral e moral na Duke Divinity School, que diz: “O clero está ‘na linha de frente’ da resposta [ao transtorno mental] por causa da importância das comunidades de fé na vida das pessoas – estejam ou não equipadas para isso. Por este motivo, é ainda mais vital que as comunidades de fé respondam eficazmente aos [membros] que lidam com doenças mentais, oferecendo-lhes a ajuda de que precisam.”
Tara Burton salienta que, para muitos especialistas, a maior barreira a uma resposta adequada e efetiva da igreja às questões mentais não se baseia na teologia, mas sim num estigma social. Quando alguém da igreja apresenta uma enfermidade física ou perde um ente querido, outros membros da comunidade o procuram, se reúnem em torno dessa pessoa, visitam no hospital, mas o mesmo não acontece com indivíduos que estão lutando e sofrendo com distúrbios na saúde mental. Por isso, é importante falar abertamente sobre o assunto nas igrejas para dissipar os preconceitos.
Na visão da psicóloga Hadassa Nishihara, a Igreja de Cristo como portadora da boa notícia, o evangelho de Jesus, carrega em sua essência a maior contribuição possível à saúde mental da humanidade. Para isso, segundo a especialista, a identidade da Igreja como um hospital, metáfora usada pelo próprio Jesus, precisa ser melhor trabalhada. “Precisamos, mais do que nunca, assumir essa missão de hospital”, afirma a psicóloga.
Orientações às igrejas
Para Nishihara, quando o assunto é saúde mental, o melhor serviço que a Igreja pode oferecer ao mundo é ser uma comunidade inclusiva quanto à diversidade psíquica, ou seja, quanto às condições psíquicas das pessoas. Muitas comunidades de fé podem se ver perdidas diante de tão grande necessidade e desafios. A psicóloga ressalta alguns pontos importantes que podem ajudar as igrejas:
- No meio da Igreja, como em qualquer grupo, haverá pessoas com estruturas mentais que dificultam seu convívio, adequação social ou produtividade. Essas pessoas precisam de cuidados especializados tanto quanto os irmãos com miopia, paralisia ou diabetes.
- A salvação e a comunhão são para todos, não apenas aos que parecem mais adequados ou desejáveis socialmente.
- A forma como os cristãos se tratam em suas comunidades faz toda a diferença.
- A Igreja precisa buscar encontrar o dom que Cristo dá aos seus discípulos (Efésios 4.8), inclusive àqueles com transtornos mentais, para que todos se dediquem a uma construção mútua, como quem constrói um belo edifício, não derrubando, destruindo, desprezando.
- Cada um chegará na igreja com suas dores, de suas histórias, mas se a Igreja se dispuser a acolher, chorar junto e evitar novas feridas, já é uma grande contribuição.
- A Igreja tem a Cristo, que é o poder de Deus (I Coríntios 1.18), ou seja, nada lhes falta para tal tarefa, mas nada depende de vocês a respeito dela.
- É uma jornada coletiva e comunitária. Contar com um profissional capacitado para o tratamento de pacientes graves em grupo seria de muita utilidade.
- Uma comunidade curadora, precisa incluir a todos, com amor, ouvindo as pessoas, e aprendendo, pouco a pouco, como tratar delas na igreja-comunidade terapêutica.
- Irmãos e irmãs doentes mentalmente não precisam ser constrangidos, precisam primeiramente de respeito, recebendo lugar em nossas mesas, mesmo que sejam diferentes.
- Todas essas ações preventivas e interventoras são muito poderosas para o restabelecimento e prevenção do adoecimento mental. A Igreja de Cristo pode ser uma potência na prevenção e intervenção em adoecimento mental se buscar agir de forma adequada.
Orientações aos pastores e líderes
Diante de tão grande demanda, a psicóloga Nishihara encoraja pastores e líderes a se esforçarem para construírem comunidades de fé que sejam promotoras de bem-estar emocional e mental, tanto para membros como líderes. Atendendo ao nosso pedido, ela deixa algumas orientações aos líderes:
- Pessoas que estão sendo prejudicadas em suas atividades, e/ou relacionamentos por seu sofrimento mental, devem ser encaminhadas a um psicólogo e um psiquiatra, caso ainda não estejam sendo acompanhadas.
- Qualquer outra pessoa que queira fazer uma avaliação ou levar algum assunto ao psicólogo deve ter essa liberdade também.
- Encontrar um profissional que compartilhe da sua cosmovisão pode evitar conflitos com a direção do tratamento e facilitar a compreensão de dilemas internos à igreja.
- É importante que a liderança da igreja desenvolva um programa de visitas para atender pessoas que precisem de cuidado com a sua saúde mental. Se possível, visitas acompanhadas com um psicólogo da igreja.
- Pastores e líderes não devem fazer vistas grossas ao bullying entre suas crianças e jovens. Intervenha em todas as cenas, mostrando às vítimas que você está vendo e que se importa. Corrija o indivíduo violento dando-lhe um limite claro do comportamento aceito em suas comunidades. Ouça-o também. A afirmativa que justifica a agressão precisa ser confrontada e substituída pela verdade do amor. Ore por ambos. Não só uma vez, não em tom repreensivo, mas clamando ao Senhor que o encha do Seu Espírito para que ele transborde a vitória sobre o Maligno da qual o apóstolo João nos falou (I João 2: 13).
- Pastores têm o privilégio de servirem nessa geração contando com profissionais especializados e pessoas, fiéis, que são valorosos instrumentos. Não os desperdice. Traga-os para perto e os ouça a respeito dos desafios de fazer sua igreja o lugar onde habita a cura para as nações (Apocalipse 22: 2).
- Pensar e cuidar da saúde mental é fazer missão para os nossos dias sem ignorar nossos problemas. É servir fielmente em nossa geração como fez Davi (Atos 13: 36). Não impeça o irmão adoecido de exercer o ministério. Ele precisará de ajuda, acompanhamento, oração, pastoreio de perto, mas você também não precisa?
Para se aprofundar no assunto, confira as dicas
Cursos
- Depressão: Como aconselhar, amar e cuidar de quem está sofrendo? clique aqui
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- Prevenção de lesões autoprovocadas e suicídio: capacitando profissionais de atenção primária à saúde (Curso gratuito. Em espanhol) clique aqui
Leituras
- Igrejas, comunidades terapêuticas (Ultimato)
- Culpa e graça (Paul Tournier)
- Depressão e graça (Wilson Porte Jr.)
- A Cura do Trauma (Carolyn Yoder)
- Feridos em nome de Deus (Marilia de Camargo César)
- A saúde como tarefa espiritual (Anselm Grun)
- Espiritualidade emocinalmente saudável (Peter Scazzero)
- Andando com o tanque vazio (Wayne Cordeiro)
Por Phelipe Reis | Jornalista e colaborador de conteúdo para o site Sepal.
Referências:
[i] Saúde Mental na Pandemia
[ii] O que é saúde mental?
[iii] Transtornos mentais
[iv]
[v] 1 in 4 Pastors & Congregants Suffer from Mental Illness
[vi]
[vii] Pastoral Care and the Complexity of Mental Illness in Pentecostal and Evangelical Churches
[viii] Christian faith communities are often on the front lines of mental health care