Algumas considerações sobre o choque cultural: como os brasileiros podem enfrentar melhor os desafios de viver em Portugal.

Brasileiros e portugueses falam a mesma língua (ou quase), mas considerar que as culturas são semelhantes é um erro que geralmente traz muitas dificuldades.

As transições ou mudanças de um país para outro por qualquer motivo têm facetas que enriquecem a existência humana, mas por outro lado também apresentam desafios que precisam ser encarados da forma correta.

Ao mudar para outro país, todos os membros da família irão experimentar o processo de transição, composto das fases de euforia, choque cultural, aculturação e estabilidade. Neste artigo o foco será enfrentar e superar o choque cultural, ao qual cada integrante da família reagirá de forma particular, de acordo com a idade, a personalidade e outros fatores e circunstâncias. Nem sempre as coisas correm bem para todos, e é preciso estar minimamente preparado para entender e lidar com as situações específicas que surgirem, o que requer conhecer e desenvolver a inteligência cultural individual e familiar.

A integração numa nova cultura e o inter-relacionamento com as pessoas do novo país exigem competências culturais que devem ser construídas a partir da compreensão dos parâmetros e das diferenças culturais básicos. Isto também se aplica ao nacional que recebe pessoas de outras culturas.

O choque cultural é inevitável: “Junto dos rios da Babilônia, ali nos assentamos e choramos, quando nos lembramos de Sião…” (Salmo 137:1…). Dentre os principais sintomas do choque cultural, destacam-se a comparação, os sentimentos negativos e a agressividade para com a cultura hospedeira.

A Canção do Exílio

Gonçalves Dias foi um brasileiro que estudou Direito em Coimbra, e é o autor da famosa Canção do Exílio, de 1843. Apesar de ser considerado um texto de profunda glorificação à pátria, escrito apenas duas décadas após a independência do Brasil, a Canção do Exílio é, na essência, um poema que claramente expressa o choque cultural experimentado por Gonçalves Dias em terras lusitanas. É fácil perceber a comparação ressaltada por ele, sempre a favor do Brasil, por vezes de forma hiperbólica, bem como os sentimentos que dele se apossaram em Portugal, revelados no seu poema:

Canção do Exílio

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Gonçalves Dias | Coimbra, 1843

É também interessante notar que o poema de Gonçalves Dias foi reciclado no Hino Nacional Brasileiro no trecho “Nossos bosques têm mais vida; Nossa vida (em teu seio) mais amores”, e na Canção Militar do Expedicionário, no trecho “Por mais terras que eu percorra, não permita Deus que eu morra; Sem que volte para lá”. Isto significa que, no Brasil, de forma surpreendente, alguns aspectos do choque cultural revelados por Gonçalves Dias em Coimbra ganharam contornos de nacionalismo!

Saudades x saudosismo

O choque cultural tem início e tem fim, e é perfeitamente natural e compreensível ter saudades e querer rever pessoas e lugares, desejar voltar a sentir os perfumes da região de origem bem como, de vez em quando, provar novamente os sabores brasileiros bem marcados na memória gastronômica. Contudo, alimentar-se consciente e inconscientemente de um saudosismo exagerado e de uma brasilidade acentuada e quase permanente mesmo nas coisas simples do cotidiano como comida, futebol, música, afetividade, clima, o jeito de ser e de fazer igreja, costumes e etc. poderá implicar em passar um tempo excessivamente longo em choque cultural em Portugal. Neste caso, as comparações que realçam que o melhor está no Brasil são recorrentes, nutrindo-se assim uma aversão aos portugueses e a Portugal. O refrão muito popular “sou brasileiro com muito orgulho” ajuda a reforçar esta tendência. O risco é que, em vez da desejada e esperada integração, venha ocorrer uma guetização cultural, e como consequência a vida torna-se emocionalmente complexa, deprimida, por vezes insuportável, e não raro chega-se ao extremo de ter de voltar à pátria amada, acumulando-se perdas e frustrações sem medida.

Sensibilidade cultural

Em Atos capítulo 2: 4-12 nota-se claramente a sensibilidade cultural do Espírito Santo, uma vez que todos os presentes em Jerusalém por ocasião do Pentecostes, “partos, medos e elamitas; habitantes da Mesopotâmia, Judéia e Capadócia, Ponto e da província da Ásia,
Frígia e Panfília, Egito e das partes da Líbia próximas a Cirene; visitantes vindos de Roma, tanto judeus como convertidos ao judaísmo; cretenses e árabes. Nós os ouvimos declarar as maravilhas de Deus em nossa própria língua! ” O Espírito Santo teve o cuidado de comunicar a mensagem na língua materna de cada visitante!

Assim, numa tentativa de minimizar a intensidade, os efeitos e a duração do choque cultural, é necessário treinar esta mesma sensibilidade cultural, a qual, por sua vez, facilitará a percepção das questões de identidade e do sentimento de pertencimento numa transição cultural.

Algumas propostas neste sentido compreendem o seguinte esforço de aprendizagem ao longo de toda a vida de um brasileiro em Portugal:

  1. Mergulhar nas expressões culturais de Portugal – ler, estudar, participar, experimentar… a arte, a música, a comida, a literatura, a história e etc. Conviver propositadamente com portugueses e aprender/assimilar deles.
  2. Identificar, apreciar e incorporar as similaridades e principalmente as diferenças culturais entre Brasil e Portugal – há vasto material técnico a respeito. A ideia é tentar compreender com respeito e empatia as razões das diferenças e não fazer comparações,
    pois em geral uma cultura não é melhor do que a outra, simplesmente são diferentes! Todas as culturas evidenciam sinais da Queda e da Imago Dei e, portanto, não há espaço para o monoculturalismo ou etnocentrismo.
  3. Decidir todos os dias amar Portugal e os portugueses! Fazer amigos lusitanos.
  4. Imitar a Jesus Cristo – Ele é o paradigma máximo da transição cultural, ao decidir, por amor, esvaziar-se da sua cultura celestial para aculturar-se (encarnar) em pleno no ambiente humano (Filipenses 2:5-8). Assim como Jesus nasceu para a cultura judaica, o
    cristão que vai para outras terras tem de, intencionalmente, nascer para a nova cultura de acolhimento. É um ato de humildade e amor. Cristo também ensinou a Nicodemos que é necessário nascer de novo, espiritualmente, para poder fazer parte do Reino de
    Deus (João 3:1-5). Analogamente, é necessário nascer de novo, culturalmente, para se integrar em Portugal.
  5. Assumir a nova identidade: “Tiveram assim um filho que se chamou Gerson, porque Moisés se considerava um estrangeiro em terra estranha” (Êxodo 2:21).

A Canção do Lar

O objetivo deste artigo é dar uma pequena contribuição a cada brasileiro que, por alguma razão, passou ou passará a viver em Portugal, especialmente aos missionários cristãos. Assim, tomando-se como base o ensino e o exemplo de Cristo bem como a entrega cultural voluntária de Rute (Rute 1:16 e 17), o poema Canção do Lar é a única tentativa conhecida de um manifesto cultural em contraste à Canção do Exílio. Fazer de Portugal o novo lar é muito mais agradável e saudável do que ver e sentir a terra de Camões como um exílio, lugar de dor e angústia. Com isto em mente, a Canção do Lar pode ser uma reflexão-oração inicial, sendo que a mesma integra no seu corpo alguns elementos importantes da portugalidade, juntamente com verdades bíblicas relevantes:

Canção do Lar

Sou peregrino e estrangeiro neste mundo
Vou a caminho da Casa do meu Pai
Entretanto ao passar por Portugal
Eu experimento um novo nascimento cultural.

Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena.
Quero orar e cooperar para o bem-estar deste lugar,
Dar o meu melhor a este lar que me acolhe
Participar, beber do seu fruto, brindar…

Enquanto entranho os cheiros
e os sabores desta terra
e misturo-me aos seus encantos,
rendo-me à aprendizagem latente
semente lusitana que me faz aqui ficar.

As aves que aqui gorjeiam noite e dia
Eu quero admirar
Com o privilégio de cuidar e desfrutar
Das belezas e delícias deste jardim à beira-mar.

Este povo será o meu povo
Heróis do mar, nobre povo
Gente que tenho aprendido a amar
E a sua amizade apreciar.

A sua alegria será a minha alegria
A sua dor será a minha dor
Da sua rica mesa vem o pão que sacia
Pela Graça irei me integrar.

Eu caminho com Cristo, e ele comigo
Ele me dá a sua paz
Recebi boas notícias para partilhar
O Vento as leva onde quer soprar.

E assim eu continuo a sonhar a missão, ao servir estes meus irmãos
Porque afinal falta cumprir
O amor a Portugal
O amor a Portugal.

António Rodolpho | Estoril, 2018

Caminhar entre duas canções

É possível que em algum momento um brasileiro em Portugal enfrente o modo “Canção do Exílio”, pois o choque cultural pode ser implacável. Ou pode ser um choque menos severo. Em qualquer caso, o coração desta pessoa não necessita ficar paralisado neste estado, como parece que foi a situação de Gonçalves Dias em Coimbra. O objetivo de toda a transição cultural é, na dependência do Senhor e em conformidade com a Sua palavra, alcançar gradativamente, e com deslumbramento, o modo “Canção do Lar”. Esta é a jornada espiritual para os brasileiros cristãos que escolhem viver em Portugal.

Que assim seja!

Por António Rodolpho | missionário na Europa/Portugal desde 1997