A pandemia da Covid-19 aprofundou a crise socioeconômica no Brasil. O aumento do desemprego, a alta da inflação, o crescimento da fome e a precariedade do sistema de saúde foram alguns dos fatores que impulsionaram uma onda de solidariedade por parte de igrejas e organizações baseadas na fé cristã.

Um exemplo recente foi visto em Manaus, Amazonas. Por causa do rápido aumento no número de infectados, o sistema de saúde entrou em colapso, faltou oxigênio e pessoas morreram asfixiadas. Diante da situação, dezenas de igrejas e organizações cristãs se uniram para socorrer a população.

O socorro emergencial chegou em forma de doações de cilindros de oxigênio, insumos hospitalares e medicamentos para unidades de saúde, além da distribuição de alimentos, consultas online gratuitas, apoio emocional e espiritual à população, entre outras ações.

O que acontece quando a igreja se une

Eunice Bueno, gerente da base de Asas de Socorro em Manaus, descreve como percebe o trabalho da igreja na pandemia: “Temos orado a Deus pedindo cura, confessando o nosso pecado, clamando que ele sare a nossa terra, e ele tem agido em nós. Cada ação de socorro que realizamos foi possível pela união de redes, de parceiros que estão de mãos dadas”. Ela também conta alguns episódios que chama de sinais do reino de Deus e de “milagres que escampam à mídia”. Confira:

“Recentemente, ouvi com alegria o testemunho do missionário Eduardo Magrim, dizendo: ‘Agradeço Asas [de Socorro] e Meap que nos socorreram na hora certa e nos retiraram de Pauini [sul do Amazonas]. Isso salvou meu filho, Pedrinho, de 3 anos, com Covid-19’. E o que dizer do movimento pela vida do Valdinei? Ele é missionário em Lábrea, trabalha com duas missões, Asas e Meap, acabou sendo infectado e ficou num quadro muito grave. Deus agiu e em quatro dias conseguimos a remoção dele para Goiânia com a ajuda de uma multidão de parceiros: Missão do Céu e outros que ofertaram e se uniram num só propósito. Dias atrás, nosso avião partiu de Anápolis para levar oxigênio para o interior do Amazonas. Mais uma vez juntos, Asas e Missão do Céu, em cooperação com a Primeira Igreja Batista de Parintins. Isso é Graça. Esses são milagres muitos que escapam à mídia. Esse é o povo de Deus cumprindo sua missão. São esses os sinais do reino de Deus.”

Sarah Rodrigues, diretora da ONG Justiça & Misericórdia Amazon, esteve na linha de frente liderando dezenas de voluntários em ações solidárias em Manaus. Ela descreve a ação da igreja e destaca a cooperação: “As igrejas mobilizaram voluntários, recursos materiais e financeiros que possibilitaram uma ajuda emergencial muito significativa. Milhares de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, cozinheiras, administradores, motoristas e toda sorte de outras ocupações de cristãos pelo Brasil, se dispuseram a servir incansavelmente e doar generosidade.”

Ela diz que o trabalho em rede durante a pandemia não anula a autonomia e a identidade de cada organização e igreja, pelo contrário, isso complementa e enriquece as ações. “Evidentemente, a cultura de serviço e  ajuda entre o grupo é tão diversa quanto a sua formação. Jesus celebrava a diversidade do corpo. Ele também era atento às pessoas e às suas necessidades específicas, e mesmo sendo Deus, fazia perguntas  sempre interessado em ouvir. Discípulos de Jesus servirão melhor sempre que houver interesse genuíno, escuta ativa e coração inclinado à agenda do Pai”, conclui Rodrigues.

Confissões de fé versus Soluções de fé

Esse tipo de ação emergencial protagonizado por cristãos pode até parecer algo pontual e isolado, mas faz parte da história da tradição da igreja cristã. Bebeto Araújo, diretor da Missão Aliança, trabalha há anos apoiando igrejas que desenvolvem projetos de assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade. Ele comenta que as necessidades da vida não demandam confissões de fé, mas sim soluções de fé. “Graças a Deus, uma boa parte da igreja no Brasil tem manifestado uma fé viva, encarnada, que não espiritualiza a práxis cristã, antes, a materializa através da prática das boas obras em favor daqueles que sofrem – seja este sofrimento de natureza física, social, emocional ou espiritual”, destaca Araújo.

Embora seja muito relevante para atender a uma necessidade emergencial, a ação da igreja não pode estagnar no nível da caridade, precisa ir além e avançar na direção da justiça. Bebeto Araújo argumenta que, segundo as Escrituras Sagradas, existe uma relação direta entre conhecer a Deus e praticar a justiça. Ele afirma: “Toda a Bíblia revela um Deus comprometido com a história, que ama a justiça, é pai de órfãos, protege a viúva, é o Soberano Senhor de toda a criação e está em Missão, ‘fazendo novas todas as coisas’ (Ap. 21.5)”.

O missionário e especialista em negócios sociais, Danilo Ladentim, vê com bons olhos a atuação da igreja na pandemia: “Vejo como um movimento bem interessante, robusto e com capacidade de engajamento de irmãos que antes não apresentavam muitas intenções com esse tipo de trabalho. Por outro lado, focar apenas em emergência gera pouco compromisso com a causa e menos força de transformação a longo prazo. Precisamos unir os auxílios emergenciais com trabalhos de desenvolvimento e discipulado, que são combustíveis importantes para a mudança do mundo.”

Danilo acrescenta que a igreja deve cuidar dos que estão à sua volta, sinalizando o reino de Deus. “Se cada igreja se comprometer com ‘os seus’, teremos a realidade do evangelho de Cristo sendo realmente propagada e trazendo justiça de forma plena”, enfatiza o missionário.

10 princípios que as igrejas devem considerar em suas ações solidárias

A partir da contribuição dos entrevistados, listamos a seguir alguns princípios que podem auxiliar no trabalho solidário da igreja. Confira:

1.

Mantenha a fé e ore. Começamos a experimentar maior unidade quando oramos juntos.

2.

Cuide uns dos outros. Tem pessoas sem trabalho, sem dinheiro, sofrendo de pânico e medo.

3.

Pastoreie os corações e denuncie como voz profética as injustiças que ofendem a Deus.

4.

Não negue as evidências científicas e não ignore que a covid-19 mata e leva muitas vidas.

5.

Comprometa-se em disseminar a verdade e combater as notícias falsas (fake-news).

6.

Trabalhe com sensibilidade ao que Deus já está fazendo e com humildade para submeter seus planos aos dele.

7.

Ajude baseado não na religião e sim no relacionamento – com Cristo e com o outro –, baseado na necessidade do próximo e não no que você quer dar.

8.

Sirva em nível de igualdade, sabendo que o outro é tão importante, quando não, mais que  você mesmo.

9.

Fique atento para não perder tempo com vaidades, divisões e protagonismos que não mostre uma igreja, formada por discípulos aos pés da cruz de Cristo.

10.

Enxergue o indivíduo de forma integral, como sujeito de direitos. Escape da ideia de ser solidário com uma segunda intenção, ajudando para obter retorno denominacional. Ajude por obediência, por ser um mandamento de Deus.


Por Phelipe Reis, jornalista e colaborador de conteúdo para a Sepal.

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Colaboraram com este conteúdo

Bebeto Araújo, diretor da Missão Aliança no Brasil, estudou missiologia no Centro Evangélico de Missões e é engenheiro florestal. Casado com Suely e pai do Timóteo, Rebeka e Júlia.

Danilo Ladentim, missionário em tempo integral desde 2006, marido de Deise e pai do Pedro. Especialista em Empreendedorismo e Negócios Sociais. Atuou por dez anos como coordenador de projetos no Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral (Cadi). Atualmente é coordenador de captação de recursos da Associação Cristã de Assistência Social (ACRIDAS), em Curitiba (PR).

Eunice Bueno Menezes, gerente da Base de Asas de Socorro em Manaus, Amazonas, onde mora com o esposo, Juraci. Ambos servem como missionários em Asas há mais de dez anos.

Sarah Rodrigues, carioca, casada com Magno Rodrigues, missionária no Amazonas há doze anos. Bacharel em Missiologia pela Faculdade Batista da Flórida, formada em Gestão de Projetos pelo IBMEC e Liderança pelo Professional Christian Coaching Institute. Serve como Diretora Nacional na Justiça & Misericórdia Amazon.