Por António Rodolpho. 

Buscar estabelecer o cristianismo intercultural na Europa é assunto de extrema importância para o presente momento histórico, caracterizado por uma elevada mobilidade das populações a nível global, interrompida parcial e temporariamente por causa da pandemia do Covid-19.

Como exemplo das implicações desta mobilidade, o estudo de 2018-2019 “Identidades Religiosas e Dinâmica Social na Área Metropolitana de Lisboa”1 revelou que cerca de 66% dos cristãos evangélicos nesta região são estrangeiros! Naturalmente existe uma interação entre os crentes nacionais e os estrangeiros, relação esta marcada por momentos inspiradores de acolhimento recíproco e unidade cristã, mas também por episódios tristes de tensão, incompreensão e hostilidade mútuas.

Esta é uma realidade presente em diversos lugares do planeta, mas que tem um significado especial no hemisfério norte, rico e secularizado, no qual, em geral, as igrejas nacionais apresentam um declínio acentuado nas últimas décadas, mas onde as igrejas de imigrantes, as chamadas igrejas das diásporas, crescem a um ritmo surpreendente. O relatório missiológico “Europe 2021”2 aponta a dificuldade dessas igrejas alcançarem os europeus com o evangelho, e destaca a necessidade imediata de se buscar a cooperação e a unidade entre as igrejas das diferentes diásporas e as igrejas nacionais para a reevangelização do continente, o que requer intencionalidade e oração.

É natural e expectável que esta multiculturalidade traga consigo uma infinidade de desafios, diante dos quais a Igreja de Jesus Cristo deve se posicionar de forma a refletir o amor do seu Senhor. Neste caminho da reconciliação e da convergência, certamente há uma disciplina espiritual específica.

Não há dúvidas que a disciplina espiritual em causa encontra fundamento no texto de Gálatas 3:28, no qual Paulo afirma que “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus.”

De maneira idêntica, este necessário exercício espiritual está intimamente associado à sensibilidade cultural do Espírito Santo por ocasião do Pentecostes descrito em Atos 2, quando os visitantes de todos os países do mundo presentes em Jerusalém “ouviram as maravilhas de Deus através dos discípulos de Jesus na sua própria língua materna.” Ora, se o Espírito Santo está presente na vida dos cristãos hoje, então não haverá espaço para a indiferença ou preconceito com relação às pessoas de outras culturas.

O livro de Rute fornece algumas orientações práticas para esta disciplina espiritual da interculturalidade. Interessante notar que no primeiro capítulo do livro verificam-se 3 movimentos migratórios: a família de Elimeleque e Noemi parte de Belém para Moabe; após 10 anos, Noemi regressa a Belém com o coração cheio de amargura (Mara), por causa das tragédias ocorridas, e, como terceiro movimento, Rute decide acompanhar a sogra Noemi e emigra para Belém. Em cada um desses movimentos há muitas ilações e lições úteis a aprender, mas que não serão exploradas neste curto artigo.

A deslocação de Belém para Moabe foi motivada pela fome. Muitos emigram de seus países de origem por necessidade económica ou de segurança. E muitos enfrentam tragédias, como por exemplo aqueles que tentam cruzar o Mediterrâneo em embarcações precárias. Em geral, este tipo de imigrante está mais inclinado a receber do que a dar. Por outro lado, quem emigra por paixão, como Rute, está pronto a se doar ao novo país.

De forma resumida, eis alguns “inputs” sobre a disciplina espiritual da interculturalidade extraídos do livro de Rute, e que facilitarão a aproximação frutífera entre as igrejas das diásporas e as igrejas nacionais, ou entre os nacionais e os estrangeiros em uma mesma comunidade cristã:

1. A importância de um mentor cultural

 Logo no primeiro capítulo, verifica-se que a família de Noemi se desloca de Belém para Moabe por causa da fome. Noemi sofre perdas trágicas em Moabe, com a morte do marido e dos dois filhos, e decide voltar para Belém. A sua nora Rute resolve acompanhá-la, e faz a maior declaração de intenção de ajustamento cultural conhecida: “O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus!” (Rute 1:16)

Rute encontra em Noemi uma espécie de mentora cultural. Noemi agora conhece aspectos de ambas as culturas e pode orientar Rute na sua desejada adaptação a Belém.

O livro de Daniel reforça esta ideia. Daniel recebeu um treinamento de 3 anos antes de começar a servir o rei na Babilónia. Lemos no primeiro capítulo que o chefe dos oficiais da corte, Aspenaz, deveria ensinar Daniel e outros israelitas “a língua e a literatura dos babilónios…”

Este é um princípio importante para todos os que experimentam uma transição cultural, não só para os missionários, mas especialmente para os líderes das igrejas das diásporas. Com a humildade de Rute, devem buscar oportunidades de mentoria cultural no meio evangélico nacional, ou fora dele, formal ou informalmente, o que diminuirá o choque cultural e facilitará o processo de aculturação. Claro que a encarnação de Cristo, com a sua imersão total na cultura humana, é a principal fonte de inspiração para buscar um ou mais mentores culturais no país de acolhimento.

2. A importância de encorajar os estrangeiros

 No segundo capítulo do livro, Rute coloca em prática os conselhos de Noemi para a vida diária, para obter o necessário sustento na nova cultura. Ela segue as regras e tradições locais. Foi nessa condição que ela conhece o dono das terras onde foi recolher alimentos, Boaz, que expressa o seu acolhimento e reconhecimento: Estou impressionado – “como deixou seu pai, sua mãe e sua terra natal para viver com um povo que pouco conhecia. O Senhor lhe retribua o que você tem feito.” (Rute 2:11,12)

Aqui está a parte que cabe ao nacional que recebe estrangeiros: acolhimento, interesse em ouvir as suas histórias, apoio e encorajamento. Todo estrangeiro necessita experimentar este tipo de hospitalidade (xenophilia) na nova cultura, especialmente nas igrejas.

Então Rute disse: “Continue eu a ser bem acolhida, meu senhor! O senhor me deu ânimo e encorajamento…” (Rute 2:13 …)

3. Conexão do nacional com o estrangeiro

 No terceiro capítulo, Rute, ao seguir as orientações da sua mentora cultural, e respeitando as tradições locais, abre espaço para um entendimento íntimo com Boaz que, por sua vez, promete agir de imediato – ele tira os obstáculos do caminho. Há possibilidade de uma cooperação frutífera quando os muros de separação são identificados e derrubados!

Foi exatamente que o Espírito Santo, de forma milagrosa, realizou com a aproximação entre Pedro e Cornélio em Atos capítulo 10.

Os nacionais e os estrangeiros devem juntos procurar remover os preconceitos e barreiras que impedem a comunhão e a colaboração. Em alguns casos, o perdão e a reconciliação são necessários.

A igreja composta por nacionais não deve ignorar os estrangeiros no seu meio e à sua volta, e vice-versa. As igrejas nacionais e as igrejas étnicas ou das diásporas devem aproximar-se e buscar entendimento fraternal e amizade com vistas à cooperação em favor do Reino de Deus!

4. Parceria intercultural e frutos

 Finalmente Boaz e Rute casam-se. Tiveram um filho e lhe deram o nome de Obede. Este foi o pai de Jessé, pai de Davi. (Rute 4:17…) Jesus Cristo é descendente do rei Davi. Por esta razão, Rute é uma das poucas mulheres a ser mencionada na linhagem de Jesus, mesmo sendo uma estrangeira.

Há esperança de uma agenda de convivência e de cooperação que produza frutos. A unidade da igreja de Cristo já é uma realidade espiritual, que pode ser experimentada de forma criativa. Talvez esta cooperação intercultural seja uma semente que leve 2 ou 3 gerações para florescer, mas certamente a disciplina de caminhar juntos vai revelar Cristo às nações.

Conclusão

Quando o livro de Rute é lido com as lentes da interculturalidade, afloram alguns princípios e práticas importantes para os cristãos nacionais e estrangeiros, em um determinado contexto, convergirem para um cristianismo intercultural.

Cabe destacar que o interculturalismo ultrapassa os horizontes do multiculturalismo. Estes dois conceitos3 assemelham-se nisto: que a sociedade não é homogênea, mas sim plural. Contudo, há distinções claras entre ambos, já que a multiculturalidade expressa as diferenças como um facto objetivo e a interculturalidade propõe que estas diferenças se traduzam em plena integração das culturas. Neste sentido, a interculturalidade pretende criar um modo de convivência no qual nenhum grupo se sinta discriminado por algum aspecto diferenciador. Ou seja, todas as culturas merecem o mesmo respeito e não é aceitável qualquer tipo de desigualdade. Além disto, a interculturalidade promove uma troca frutífera e uma aprendizagem mútua.

Daí fazer sentido completo a afirmação de Ronaldo Lidório: “o evangelho é supracultural, pois define e explica a cultura, não o contrário; cultural, por ter sido revelado à humanidade em seu próprio contexto e história; intercultural, por juntar ao redor de Jesus pessoas de todos os povos; multicultural, ao ser destinado a todos os povos e línguas; transcultural, quando transmitido de uma cultura a outra; e contracultural, pois sempre confronta o homem em sua própria cultura.”

No atual contexto europeu (e não só), em geral não parece ser frutífero continuar a ser uma igreja monocultural num ambiente multicultural. Somente uma igreja intercultural poderá ter relevância e contribuir para a vivência e o avanço do evangelho.


  1. Estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos, coordenado por Alfredo Teixeira –https://www.ffms.pt/FileDownload/7d0bcd01-1fe3-4736-ab2f-6d0938160663/identidades-religiosas-e-dinamica-social-na-area-metropolitana-de-lisboa, acessado em 29/09/2021
  2. Europe 2021 A Missiological Report, de Jim Memory, ECM –https://www.ecmi.org/pt/europe-2021-a-missiological-report, acessado em 29/09/2021
  3. https://conceitos.com/interculturalidade/, acessado em 30/09/2021

António Rodolpho, pastor e missionário na Europa desde 1997.
Portugal, Janeiro de 2023.