SÉRIE | COMO DISCERNIR NOSSO TEMPO
Música, pintura, escultura, desenho, dança, teatro. As expressões artísticas são muitas e expressam, em parte, a cultura de um povo. Deve a igreja se importar com a arte e a cultura? Se sim, que tipo de relação é possível estabelecer com essas áreas? Neste artigo, tentaremos dialogar com essas perguntas. Vamos apresentar alguns pontos de tensão e perspectivas e, ao final, uma entrevista especial com Gerson Borges e Darli Nuza.
Comentando o conteúdo do Pacto de Lausanne, o teólogo anglicano John Stott admite a dificuldade em definir cultura e a compara com uma tapeçaria, complexa e quase sempre bela, tecida por uma determinada sociedade para exprimir a sua identidade coletiva, com cores e padrões que simbolizam as crenças e os costumes da comunidade. Stott destaca:
“Cada um de nós, sem exceção, nasceu e foi criado numa determinada cultura. […] ela é também parte de nós mesmos. Assim, achamos muito difícil ficar fora dela e ao mesmo tempo avaliá-la. Todavia, é preciso que aprendamos a fazê-lo. Pois se Jesus Cristo há de ser o Senhor de tudo, a nossa herança cultural não pode ser excluída do seu senhorio.”
Por sua vez, o teólogo Filipe Fontes, mestre e doutor em Educação, Arte e História da Cultura, argumenta que a arte é um reflexo da cultura, isto é, uma expressão humana de uma dimensão da realidade: a beleza. Fontes justifica:
“Quando criou todas as coisas, Deus trouxe à existência uma realidade que é, dentre outras coisas, bela. Por que fomos criados à imagem e semelhança de Deus, somos seres criativos e podemos atuar sobre a realidade criada por Deus, recontando e recriando essa realidade a partir de nossa imaginação. Isso é o que chamamos de arte.”
Dez questões para pensar arte e cultura
1 – A cultura importa
No relato da criação, em Gênesis, Deus dá ao homem a tarefa e a responsabilidade de cultivar e guardar a criação, produzir cultura. Deus encarrega o homem de manifestar a sua imagem por meio do trabalho criativo, ou seja, por meio da cultura. Os teólogos reformados chamam essa dimensão de “mandato cultural”.
Fundamentado no conceito calvinista do senhorio de Cristo sobre a totalidade da vida, Guilherme de Carvalho resume: “Cristo é soberano sobre todas as coisas, tanto na criação como da redenção. Sua soberania na criacional se expressa na ordem cultural, fundada e legitimada por meio de mandatos de Deus ao homem.”
A missão da igreja é manifestar o poder redentor de Cristo em todas as esferas da vida – é mostrar ao mundo o significado de ser humano, no sentido de ser portador da imagem de Deus. Nesta perspectiva, os cristãos precisam atuar em cada esfera da vida para manifestar o poder redentor do evangelho, e isso inclui a cultura.
2 – A arte importa
Terry Glaspey, escritor norte-americano especialista em arte, literatura, música e cinema, escreve que sempre houve cristãos que desconfiavam do valor das artes, mas outros viram o grande poder delas para mover a alma humana e ajudar os crentes ao longo de sua jornada espiritual. Glaspey afirma que os desenhos do tabernáculo e do templo são um bom lembrete de que Deus, aquele que criou tudo, se deleita na criatividade e a vê como uma forma de apontar para sua verdade. Deus leva a arte tão a sério que escolheu a dedo um homem chamado Bezalel para realizar este trabalho de criatividade e o encheu com o Espírito Santo. Não bastava, aos olhos de Deus, criar algo funcional; ele queria algo que fosse primorosamente artístico.
Robin Margaret Jensen, historiadora da arte da igreja primitiva, afirma: “As artes podem nos mudar e nos transformar por dentro, por isso são indispensáveis para nossas vidas.”
3 – A beleza importa
Poetas, pintores, filósofos e teólogos têm historicamente defendido a convicção de que a beleza é ainda mais essencial durante nossos períodos mais sombrios. A verdade é que a beleza persiste, especialmente em tempos de incerteza ou dificuldade. Neste sentido, Marissa Voytenko afirma: “Quando a vida se torna muito pesada para suportar e as circunstâncias muito escuras para ver um caminho a seguir, a beleza tem a capacidade de aliviar o medo e oferecer esperança.”
4 – A Bíblia, a imaginação e a arte
A fé cristã é moldada em primeiro lugar pelo Antigo e Novo Testamento. É aqui que redescobrimos o que Deus fez e está fazendo com o mundo que ele ama. Naturalmente, as Escrituras dão pouca instrução direta para o artista criativo. Em vez disso, eles oferecem o que chamo de “ecologia cristã”. Eles testemunham um Criador tríplice que se encarna em Jesus Cristo, um cosmos feito por e através de Cristo, e uma visão do chamado humano como “voz do louvor da criação”.
Richard Hays fala da necessidade urgente da Igreja de recuperar uma “imaginação bíblica”, uma maneira de “viver” nesses textos antigos para que eles nos reformulem de dentro para fora. Isso se aplica ao artista tanto quanto a qualquer outra pessoa. Estes são tempos emocionantes para os estudos bíblicos. Infelizmente, muitos de nós envolvidos em teologia e artes deixam a Bíblia para trás muito cedo na conversa.
5 – A igreja e os artistas
Às vezes, a Igreja tem sido patrona das artes, apoiando e incentivando, outras vezes, a igreja tem se mantido distante das artes, vendo-as como perda de tempo, ou pior, expressão de hedonismo e sensualidade. Hoje, embora muitas igrejas dificilmente possam ser chamadas de amigas dos artistas, há um ressurgimento do interesse e da defesa das artes. A paixão por incentivar as artes é compreensível e, em grande parte, louvável, já que não só a Igreja tem uma longa história de comissionamento de arte, mas a Bíblia fala muito bem daqueles com dons artísticos e artesanais. Honestamente falando, muitas de nossas igrejas não são um paraíso para o público artístico. Portanto, faz sentido que tivéssemos que nos esforçar para receber artistas e incentivar seu trabalho.
O mundo precisa de artistas assim como precisa de cientistas, técnicos, trabalhadores, profissionais, testemunhas da fé, professores, pais e mães. Artistas que reconheçam sua responsabilidade de serem guardiões da beleza, arautos e testemunhas da esperança para a humanidade.
6 – O poder e a limitação da arte
A arte pode nos “ensinar” sobre nosso Deus que é criativo e misterioso. Mas ser engenheiro pode nos “ensinar” sobre nosso Deus que é ordeiro e conhecido. Deus é um grande Deus e muitas coisas e muitas vocações podem mostrar suas diversas excelências. Não devemos cometer o erro – e já ouvi isso com frequência – de pensar que “os poetas, os artistas, os contadores de histórias, são eles que realmente podem nos ensinar sobre Deus”. Bem, sim, eles podem. Mas o mesmo acontece com coletores de lixo.
7 – Arte e adoração na igreja local
Nossa adoração deve buscar excelência artística, mas nossa adoração será inevitavelmente “popular” e propositiva. Queremos excelência sem distrações. Os cristãos não podem pensar que a mediocridade é uma virtude. Cada igreja terá capacidades diferentes, mas o objetivo é ter música excelente, som excelente e instrumentação excelente, assim como queremos uma pregação excelente. O culto geralmente não é o momento para dar a uma criança a chance de tocar suas escalas no piano. É uma oportunidade para aqueles que trabalharam arduamente em um ofício para servir a Deus com seus labores. Mas, por outro lado, as igrejas precisam perceber que o objetivo do culto não é exibir os talentos dos artistas. O objetivo final é que a congregação seja edificada e adore Jesus Cristo para glória de Deus. Isso significa que a música deve ser bastante simples para que centenas (ou milhares) de pessoas não treinadas possam cantá-la ao mesmo tempo.
8 – As normas para as artes
A arte deve se desenvolver em conexão com o mundo criado por Deus. Embora tenha valor intrínseco, a arte não existe à parte do mundo criado. Ela existe para enriquecer a vida no mundo e isso exige que o seu significado seja experimentado na relação com o todo da vida. Toda arte é uma forma de expressão e, como tal, veicula uma mensagem. Como deve ser em toda a comunicação humana, essa mensagem deve estar sujeita à Revelação de Deus. A beleza existe numa relação necessária com a verdade e a justiça, e, fora dessa relação, ela simplesmente não pode existir.
9 – A arte como serviço
A arte é o resultado da aplicação de talentos concedidos por Deus. Talentos também são dádivas que Deus nos concede, visando o serviço a Ele, através do serviço ao próximo. A arte possui, portanto, um sentido relacional; ela existe para enriquecer a vida de outras pessoas. Isso significa que ela não deveria ser produzida de maneira egocêntrica. Devemos compreender que, num certo sentido, a arte é produto de inquietações e reflexões de um artista, e, neste sentido, é um ato de entrega individual do artista a Deus. Mas ela não deve ser, por princípio, ensimesmada. O artista deve considerar o outro e o universo simbólico dele, evitando qualquer atitude elitista e esnobe que representa um desvio do propósito intersubjetivo da arte.
10 – Como avaliar a cultura
No Pacto de Lausanne lemos: A cultura precisa ser sempre testada e julgada pelas Escrituras. Assim é porque a cultura é produto da sociedade humana, ao passo que as Escrituras são produto da revelação divina. Ora, Jesus foi enfático ao afirmar que a Palavra de Deus deve ter primazia sobre as tradições humanas (Mc 7:8,9,13). Não que toda cultura seja má. A cultura é ambígua, porque o homem é ambíguo. O homem tanto é nobre (porque feito à imagem e à semelhança de Deus) como ignóbil (porque decaído e pecador). E sua cultura reflete fielmente esses seus dois aspectos. Porque o homem é criatura de Deus, parte de sua cultura é rica em beleza e em bondade. A depravação total do homem significa que todas as partes de que se compõe foram afetadas pela queda. Não significa que ele seja incapaz de qualquer ação boa, bela ou verdadeira. Pelo contrário, o próprio Jesus disse que os iníquos são capazes de boas ações (Mt 7:11; cf. Lc 6:32). E a beleza das realizações artísticas do homem dão testemunho da criatividade com que o Criador o dotou (Gn 4:21-22). Por outro lado, visto que o homem experimentou a queda, toda a sua cultura está manchada pelo pecado, e parte dela é demoníaca, isto é, inspirada de fato pelo diabo e pelos poderes das trevas.
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Para ir um pouco mais fundo no tema, clique aqui e confira a entrevista com Gerson Borges e Darli Nuza. Gerson é escritor, músico e pastor, autor de “Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro”. Darli Nuza é artista visual, professora licenciada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Montes Claros – MG, com mestrado e doutorado em Artes pela Universidade de Brasília.
Por Phelipe Reis | Jornalista e colaborador de conteúdo para o site Sepal.
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