SÉRIE | COMO DISCERNIR NOSSO TEMPO

Deve a igreja se importar com a arte e a cultura? Se sim, que tipo de relação é possível estabelecer com essas áreas? Essas perguntas estão norteando nossa reflexão sobre como a igreja pode discernir a arte e a cultura do nosso tempo.

No artigo deste link abordamos alguns pontos de tensão e perspectivas da relação entre evangelho, arte e cultura. Agora, para ir um pouco mais fundo no tema, nada mais justo do que conversar com quem domina o assunto.

Convidamos Gerson Borges e Darli Nuza. Gerson é escritor, poeta, músico e pastor. Como músico já laçou mais de dez álbuns, com destaque para “A Volta do Filho Pródigo”, produzido por João Alexandre e premiado no Troféu Talento na categoria de Melhor Arranjo, em 2006. Graduado em Letras, é autor de “Quero Aprender a Orar” e “Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro”. Ele conta que ama a literatura e escritores canônicos, especialmente os poetas e romancistas.

Darli Nuza é artista visual, professora licenciada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Montes Claros – MG, com mestrado e doutorado em Artes pela Universidade de Brasília. Ela diz que ama misturar aquarela, bordado, café e outros materiais com a tela e o pigmento. Nas artes visuais transita por desenho, pintura, fotografia, escultura, vídeo-arte e vídeo-instalação. É admiradora de Van Gogh e tem como inspiração na aquarela, Stina Persson, no bordado, sua mãe Lourdes, na música, seu pai Lindolfo.

Confira o bate-papo.

A relação entre fé e cultura sempre pareceu e ainda parece envolver uma tensão. Essa tensão existe de fato? Se sim, a que isso se deve?

Darli Nuza – Entre outros pontos, apontaria como principais a fragmentação e o distanciamento. Não era assim, já que se voltarmos na história vamos encontrar uma igreja que lidava diretamente com a beleza e a arte em geral de modo profundo. Mas começamos a fragmentar a vida, achar que arte e cotidiano não estão conectados, transferindo-a para academia, enclausurando nas instituições. Em vez de equilibrar sua exposição e conhecer os fundamentos da Escritura para a área, ela foi tirada da igreja. Por exemplo, pensando nas grandes áreas (teatro, música, visuais, dança, arquitetura) elegemos a música como principal e subestimamos os outros campos. Não perdemos tudo, mas empobrecemos essas relações e por isso se gera tensão.

Gerson Borges – Verdade. Como os pais da igreja perguntavam, que relação há entre Jerusalém e Atenas, entre Cristo e Platão, entre a cosmovisão cristã e a da cultura grega (hoje diríamos mundana, secular)? Ou seja, como seguir a Cristo sem desvalorizar ou adorar, no sentido estrito do termo, a cultura, já que é resultante do “mandato cultural” – como expressão da Imago Dei, portadores da imagem e semelhança de Deus, somos criativos e fazedores de cultura? Para saber o que é cultura, gosto de pensar assim: rio é criação, represa é cultura. Mas de fato, sem que uma reflexão bíblico-teológica seja feita, essa tensão pode ser mais severa e problemática.  Ela foi muito bem colocada pelo teólogo Richard Niebuhr, na sua obra clássica “Cristo e a cultura “. Ele propôs que essa tensão se coloca assim: Cristo contra a cultura, Cristo da cultura, Cristo acima da cultura.

Quais os principais tópicos relacionados à cultura aos quais os cristãos deveriam estar atentos hoje?

Darli Nuza – Acredito que são muitos e por isso, seria interessante atentarmos para a visão de mundo vigente e a bíblica – a bíblica nos dará base e parâmetro para lidar com todas as outras. Apreender os pressupostos por trás das narrativas nos auxiliam a lidar com qualquer tópico relacionado a cultura e a discernir sobre quais se atentar, quais acatar, quais abster.

Gerson Borges – Durante muito tempo, o evangelicalismo brasileiro, especialmente o de maior influência do fundamentalismo norte-americano, pensou “mundanismo” como um conceito restrito à tabaco, álcool, sexo e jogos de azar, por exemplo. De fato, a vida discipulada é vida disciplinada. Mas “mundanismo” é mais que esses maus hábitos de conduta ou, como notei na minha infância e adolescência em um ambiente evangélico legalista, não ouvir música do mundo, frequentar cinema e teatro. A vida mundana, na verdade, é uma vida comprometida com valores mundanos: egoísmo, enriquecimento ilícito e explorador, vida online irrefletida e viciada, certo encantamento ingênuo com a política e ideologias tanto de esquerda quanto de direita, para falar o mínimo; dar a César o que é de Cristo – ah, como isso é mundano! Cidadania e religião, sim, Igreja e Estado, nunca – falo não apenas como batista, mas como cristão!

Os cristãos devem se engajar para a transformação da cultura? Se sim, como pastores e líderes podem fomentar esse envolvimento a partir da igreja local?

Darli Nuza – Devemos sim. Não como dominador, mas como zelador, que com equilíbrio, paciência e disposição, espera a colheita, discerne as plantas, as ervas daninhas, etc. O envolvimento com a igreja local já é um ótimo passo. Não temos como frutificar se estivermos longe do corpo. Leituras e disciplinas espirituais também são importantíssimas. Elas nos impulsionam à produção artística e renovam a responsabilidade e a relação saudável com esses campos e com a cultura. Trocas entre os irmãos e disposição para conversas também auxiliam no amadurecimento e na caminhada de quem está aberto ao diálogo.

Gerson Borges – Sim! Com certeza! E não apenas nas artes – parte importante do que entendemos como cultura. Criar cultura, nesse sentido, é cultivar coisas boas, belas e verdadeiras. O Cristianismo fez isso quando manteve o legado da Antiguidade nas bibliotecas dos mosteiros medievais, quando organizou universidades, como a de Paris, no séc. XI, e Harvard, que foi criada como um seminário da Igreja Congregacional, quando começou o movimento da Escola Dominical, abraçada por Wesley, para alfabetizar crianças inglesas pobres e em situação de risco. E o que dizer de instituições como orfanatos, o Exército da Salvação e tantos outros? O que dizer de Martin Luther King e de Bonhoeffer?

Como você avalia a qualidade e quantidade da produção cultural e artística feita por cristãos na igreja evangélica brasileira?

Darli Nuza – Pelo potencial artístico e cultural brasileiro, poderíamos ter mais. Somos um povo que pulsa criatividade em tudo que faz e temos qualidade em diversas áreas (inclusive para além das artes), mas a quantidade de produções relevantes ainda é pequena comparada com esse potencial. A maior parte da produção artística da igreja brasileira ainda está no campo da música. As outras áreas artísticas sofrem oscilação e por isso são frágeis e sofrem mais tensões. Mas, espero ver mais artistas visuais, por exemplo, apresentarem seus trabalhos, serem valorizados pelo público e manterem suas produções estáveis para glória de Deus. Desejo também que esses mesmos artistas perseverem e não desanimem só porque não são maioria. É a qualidade do trabalho que o sustenta, não a quantidade em si. E qualidade a gente sabe que precisa de processo, tempo e perseverança.

Gerson Borges – Pensando só na música, temos uma rica produção, em termos de quantidade; mas em termos de qualidade, é muito pobre em qualidade artística, poética, teológica…

Há uma porção de críticas sobre a indústria da música gospel. Como você observa e avalia esse fenômeno?

Darli Nuza – Nossa! Preciso pensar e ler mais sobre. É um campo muito diverso e complexo. Só as questões sobre a relação exacerbada entre o gospel e o Mercado já apontam que essa questão não é fácil. Muito pontos positivos e negativos.

Gerson Borges – Resumo numa frase: a música Gospel é música das igrejas negras dos EUA. Gospel no Brasil é resultado de uma “sacada empresarial”: música, não importa o estilo com letras “evangélicas”. Há coisas muito boas, mas muito a ser descartado.

Cite um dos livros que mais lhe ajudou na compreensão da relação entre evangelho, arte e cultura.

Darli Nuza – Nossa! São muitos e cada um oferta alguma coisa e ajuda em uma perspectiva. Vou deixar três: A Bíblia, em especial a trajetória de Jesus. Kevin Vanhoozer, por trazer metáforas incríveis sobre o teatro, explicando a natureza da doutrina sob uma perspectiva do drama. Os livros do Makoto Fujimura, por ser um artista que apresenta uma interpretação bíblica sobre a arte, processo de criação e questões sobre a vocação e o artista na cultura.

Gerson Borges – Prefiro citar um autor: Eugene Peterson (e toda a sua obra magnífica). Ele cita quase todos os autores e conceitos importantes no tema. Sua obra é de caráter devocional e formação pastoral, mas sua erudição e piedade me forneceram uma visão de mundo.


Por Phelipe Reis | Jornalista e colaborador de conteúdo para o site Sepal.

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