Entrevista com Marcos Amado e Paulo Feniman


Série “Como discernir nosso tempo”

Cumprir a missão sempre será o maior imperativo para a Igreja de Cristo. Entretanto, a história mostra diferentes tendências e paradigmas que mudam de acordo com as épocas. Considerar as transformações na sociedade ao longo do tempo não significa concluir que a missão da igreja muda, mas sim que tais transformações trazem implicações que precisam ser consideradas.

Mas, afinal, o que queremos dizer por missão? No livro “A Missão da Igreja Hoje” (Ultimato), Michael W. Goheen faz uma excelente explanação sobre o assunto. Ele explica que no panorama dos estudos missionários recentes há o entendimento de que o ponto de partida é a missão do Deus trino. Ele escreve:

“[…] a Igreja deve entender que sua missão é participar da missão do Deus trino. E essa missão tem uma natureza comunal: é uma missão do povo de Deus. […] missão é o chamado de um povo. Por fim, o campo de ação da missão é tão amplo quanto à criação porque a missão de Deus é a redenção de todo o mundo de Deus.” (p.21)

Se a missão da igreja não muda porque está fundamentada no caráter e na missão do próprio Deus, o que muda? Michael Goheen responde com as palavras de Stephen e Roger Schroeder:

“A igreja só se torna igreja quando responde ao chamado de Deus à missão, e estar em missão significa mudar continuamente à medida que o evangelho encontra contextos novos e diversos”.

Tomando essas colocações como pressupostos, surge a importante tarefa de refletir acerca dos principais acontecimentos de nossos dias e discernir como essas questões influenciam na tarefa missionária da igreja hoje. Para isso, conversamos com Marcos Amado, do Centro de Reflexão Missiológica Martureo, e Paulo Feniman, presidente da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB). Falamos sobre o lugar das mídias sociais em missões, a polarização político-ideológica na igreja brasileira e o esforço para alcançar povos minoritários. Confira:

Qual o lugar das mídias digitais hoje nas estratégias de evangelização?

Marcos Amado – Li recentemente que a pandemia foi descrita “como um raio-x global, revelando o que estava oculto em nossos sistemas e relacionamentos o tempo todo”. Porém, o autor vai além e diz que “a COVID-19 parece ser um raio-x acelerado, revelando e amplificando essas verdades ocultas em um ritmo acelerado”. Creio que a tecnologia já mediava as relações, mas de uma forma mais tímida. As mídias digitais já eram usadas para testemunhar de Cristo, mas a pandemia fez com que muito mais pessoas, principalmente líderes evangélicos, vissem o potencial dessas ferramentas na evangelização. Eu não creio que elas devam ter um lugar central, mas sim de apoio. O testemunho e o contato pessoal com um cristão continua sendo a ‘estratégia’ que mais leva pessoas a Cristo.

Paulo Feniman – Eu acho que as mídias sempre tiveram lugar mesmo antes da pandemia, o que aconteceu é que os que tinham mais restrições ao uso destas ferramentas se viram forçados a utilizá-las. Diante da situação, acho muito difícil que tenhamos retrocesso no uso das mesmas. Ainda assim, é preciso ter cuidado para não acharmos que as mídias substituem o ministério encarnacional. A Bíblia toda é pautada em relacionamentos e os meios de evangelismo mais eficazes também tem no relacionamento e na convivência os melhores resultados. Ainda que o uso de mídias cresça, teremos que estar preparados para criar mecanismo de acolhimento e relacionamento, caso contrário criaremos uma igreja deficiente.

O que a pandemia revelou ultrapassado e o que tem se mostrado útil no âmbito de estratégias de evangelismo e missões?

Marcos Amado – Creio que ficou evidente a necessidade urgente das organizações cristãs voltadas para a evangelização e o envio de missionários se adaptarem aos novos tempos. Nossas estruturas continuam arcaicas e dificilmente conseguimos conversar com as novas gerações. Eu já não preciso de uma agência missionária, por exemplo, para entrar em contato com líderes cristãos do outro lado do mundo que estejam dispostos a receber o missionário no campo. Ao mesmo tempo, eu tenho acesso, sem intermediação, a um grande número de livros, treinamentos online, informação sobre grupos não alcançados, professores brasileiros que estão do outro lado do mundo e com grande experiência transcultural, etc. Tempos atrás as organizações cristãs detinham o conhecimento e o know-how, mas isso agora está disponível num piscar de olhos e, quase sempre, de forma gratuita, e sem passar por longos processos de seleção de candidatos e preenchimento de formulários. Não estou dizendo que é a situação ideal, mas é a realidade com a qual temos que lidar.

Paulo Feniman – Quando estamos falando de evangelismo, acho muito complicado falar de algo ultrapassado. Pode ser que o que serve para um lugar não pode ser adaptado para outro, mas não significa que está ultrapassado, só não é mais viável para aquele contexto em questão. É preciso tomar cuidado em abandonar rapidamente estratégias no anseio de ser “moderno” ou “atual”. Na maioria dos casos, quando isso acontece estamos lidando somente com a plasticidade sem levar em conta o conteúdo. As novidades estão para nos ajudar, mas não para dirigir nossas ações.

Como o contexto nacional de brigas políticas e polarização ideológica afetam a unidade da igreja no cumprimento da tarefa evangelizadora?

Marcos Amado – Em um artigo que eu escrevi

recentemente afirmo que creio que estamos, como evangélicos, vivendo uma crise de identidade oriunda de uma situação que Thomas Kuhn chama de mudança de paradigma. A teoria de Kuhn era aplicada às ciências naturais, mas Hans Kung adaptou esse conceito e o aplicou à história da igreja, mostrando que a igreja, ao longo dos séculos, passou por uma série de mudanças de paradigmas. O problema é que enquanto o paradigma anterior vai paulatinamente perdendo sua aceitação e o novo ainda não está completamente formado e aceito, há um período de incertezas, de caos e insegurança. Tenho a impressão de que essa polarização que estamos vivendo entre os evangélicos (com suas incertezas e um aparente caos teológico, social e eclesiológico) é, em parte, resultado da mudança de paradigma que estamos vivendo como decorrência das grandes transições que experimentamos nas últimas décadas. No meio dessas inseguranças, os cristãos evangélicos, desgostosos com o que estão vendo na sociedade, começam a crer que a solução é apoiar o governo, para que o governo imponha as regras morais que nós cristãos não conseguimos transmitir à sociedade por meio do nosso testemunho. Na minha opinião, isso tem nos levado a transmitir à sociedade uma ideia totalmente equivocada do que é o evangelho e do que significa ser cristão. No afã de defendermos a correta ortodoxia e práxis, estamos atacando-nos mutuamente, trazendo grande prejuízo para o testemunho cristão. 

Paulo Feniman – É preciso dizer que a missão é de Deus e não pode ser afetada pelas nossas infantilidades e desacordos. Quando nos afastamos do propósito original da missão de Deus para nossas vidas, ele levanta outros. Também é certo que as questões políticas de hoje estão causando cada vez mais inimizades e discordância entre àqueles que deveriam expressar unidade. O problema é que quem se envereda por este caminho não está preocupado, realmente, com o reino de Deus. Na verdade, está preocupado em defender seu mundo e seu ponto de vista. Como bem disse Francis Chan: “Atualmente o mundo nos odeia não porque nos parecemos com Jesus, mas porque não nos parecemos. Somos arrogantes e há uma grave lacuna entre nossas crenças e ações.”

Como os acontecimentos dos últimos anos (pandemia, crise econômica, aumento da pobreza, etc.) impactam nossas estratégias de evangelização e de missões?

Marcos Amado – Creio que os acontecimentos dos últimos anos não deveriam impactar nossas estratégias. Antes da pandemia já tínhamos bilhões de pessoas (no Brasil e no mundo) em situações de risco e pobreza. Significa que a nossa missiologia já deveria ser suficientemente ampla para já estar incluindo esses aspectos da realidade mundial nas nossas estratégias. Mas, infelizmente, na maioria das vezes esse não é o caso. E mesmo depois da pandemia continuamos vendo nosso envolvimento na sociedade apenas como uma estratégia para evangelizar, e não como algo legitimamente bíblico e que faz parte do nosso testemunho cristão.

Paulo Feniman – Eu acho que as novas situações nos trouxeram uma clareza maior de desafios que antes não estávamos tão atentos. Alguns fatores sempre fizeram parte da nossa realidade brasileira, como as crises econômicas, por exemplo. Há anos vivemos numa gangorra de sobe e desce na economia. A pobreza aumentou e trouxe mais desafios para os que lidam com comunidades e pessoas em situação de vulnerabilidade. A pandemia, por sua vez, nos fez enxergar coisas que não queríamos ou fugíamos.

Qual sua percepção sobre você o esforço da igreja evangélica brasileira nos últimos anos em relação ao alcance dos grupos ainda poucos evangelizados no território nacional?

Marcos Amado – É normal que, depois do ímpeto inicial dos anos 80 e 90, o movimento missionário brasileiro passe por um momento de sedimentação, onde os excessos e erros vão sendo corrigidos e o envio de missionários aos grupos étnicos não alcançados torna-se mais seletivo. Creio que a AMTB tem tido um papel muito importante nesse processo. Ao mesmo tempo, (a) a maior parte dos nossos líderes evangélicos continuam sem entender a importância e relevância bíblica de irmos aonde Cristo ainda não foi anunciado e (b) o processo de secularização da nossa sociedade vai fazendo com que as gerações mais jovens tenham mais dificuldades para entender por que precisamos ir para o outro lado do mundo para “impor” nossa “religião” aos seguidores de outras religiões.

Paulo Feniman – Talvez, essa seja a grande surpresa deste tempo. Nunca houve tanto engajamento missionário como estamos vendo: igrejas, organizações e pessoas por todo canto estão se esforçando para avançar com o evangelho entre os menos alcançados. Há muitas boas iniciativas, o que nos faz ter ânimo e lembrar que em meio ao caos Deus sempre encontra maneiras de fazer com que seu Reino avance.


Por Phelipe Reis | Jornalista e colaborador de conteúdo para o site Sepal.