Por Phelipe Reis
Há quem diga que a pandemia não adoeceu a sociedade, apenas colocou nitidez em aspectos adoecidos há tempos. Neste cenário, muito tem se falado sobre o novo normal e que esse “novo” poderia levar as pessoas a adotarem hábitos saudáveis, como consumir menos e buscar ter mais contato com a natureza.
Qual o papel da igreja diante de uma sociedade enferma e que pode estar buscando novos padrões éticos e sociais? Como pastores e líderes podem dialogar e responder aos anseios de suas comunidades, neste contexto de pós pandemia?
Para o teólogo e missiólogo Timóteo Carriker, além de ministrar às necessidades que incidem no bem-estar individual das pessoas, os pastores e líderes precisam atentar para o estresse ao qual o planeta tem sido submetido, pois isso tem impacto direto no bem-estar integral da população. Nas palavras de José Marcos da Silva, pastor da Igreja Batista em Coqueiral (Recife/PE), a igreja pode contribuir profundamente para a sociedade “aprofundando o conceito de reino de Deus e ensinando que o plano de salvação consiste na redenção de todas as coisas”.
Confira a seguir uma conversa com o teólogo Timóteo Carriker e o pastor José Marcos, sobre os desafios socioambientais da pós-pandemia para a igreja brasileira.
A pandemia pode estar fazendo com que as pessoas revejam seus hábitos de consumo e passem a aderir à ideia de que “menos é mais”. O que você acha disso? Como a igreja pode contribuir para que as pessoas desenvolvam um estilo de vida menos consumista?
Timóteo Carriker – Não conheço estudos para determinar se a diminuição no consumo se deve ao fato da imposição do isolamento social ou se deve a uma decisão consciente e voluntária de consumir menos. Entretanto, a pandemia deverá nos levar a uma reflexão a respeito das angústias que o nosso planeta está sofrendo e que têm nos levado ao aquecimento global comprovado por mais que 97% dos cientistas climáticos do mundo. Por trás disto está um hábito de consumo mundial que gera uma produção industrial e que provoca a condição atual. Esta condição modifica o delicado meio ambiente e dos microrganismos, e assim favorece a proliferação de inúmeros tipos de catástrofes, inclusive na área de saúde como a que nós estamos passando hoje. Em Romanos 8.18-25 revela que essas angústias [do planeta] se vinculam à redenção da humanidade, e logo à missão da igreja. Precisamos entender melhor como isso funciona para divulgar ações cristãs que contribuam para a redenção da criação. Isto inclui aulas e recursos didáticos, como os que são oferecidos pelo movimento Renovar Nosso Mundo e vídeos, como “A História das Coisas”.
José Marcos – Sim. Sou relativamente cético quanto à velocidade das mudanças pela estrada apenas da conscientização, mesmo entendendo que essa é a melhor estrada. Observando as grandes mudanças da história, vejo que elas são antecedidas pelo que chamo de “catástrofe”. Paradigmas que vêm acompanhados de algum evento catastrófico. Por exemplo, a Reforma Protestante, gestada por quatrocentos anos, só encontra a “tempestade perfeita” no século XVI, graças a um processo de conscientização associado à catástrofe ocorrida na Igreja de Roma. A catástrofe da pandemia joga holofotes sobre os desmantelos ambientais, causados por nosso estilo de vida pecaminoso. A Igreja pode dar a contribuição chave para a virada de paradigma aprofundando o conceito de reino de Deus e ensinando que o plano de salvação consiste na redenção de todas as coisas, de toda a criação de Deus, e não apenas da alma humana.
O isolamento social impôs às pessoas uma mudança radical no estilo de vida. Somando isso a outros fatores, a situação acaba também causando transtornos à saúde mental da população. Como ministrar e ajudar essas pessoas?
Timóteo Carriker – Obviamente precisamos ministrar as pessoas estressadas. Esse trabalho pastoral se desenvolve através da visitação virtual, os telefonemas, as reuniões em grupos pequenos virtuais para orar estudar a Bíblia, e através dos recursos de mídia que a igreja pode oferecer. A minha preocupação maior, entretanto, está com o estresse que o planeta está passando. É lamentável que não passe pela cabeça de muitos de nós cristãos que essa pandemia não se trata apenas de uma condição pessoal nossa. Trata-se de uma condição do planeta ao qual precisamos nos dirigir por uma questão de sobrevivência e bem-estar da humanidade. No meio cristão, muito se fala a respeito do efeito da pandemia para nosso bem-estar, e certamente devemos fazê-lo. Mas pouco se fala das causas humanas da pandemia por meio de transformações do planeta causadas grandemente por nosso estilo de vida.
José Marcos – A mensagem bíblica é repleta de pérolas que nos ensinam a viver na adversidade, como o brilhante texto de Mateus 6.25-34, em que Jesus ensina sobre a ansiedade. Um arsenal dessa magnitude pode e deve ser transformado em pregações, estudos, ou seja, em estratégias mil para conduzir suas igrejas. Além disso, a riqueza da membresia e de simpatizantes com os quais a igreja conta, pode ser usada de diversas maneiras, como a criação de grupos voluntários de psicólogos/as que podem dar apoio mais qualificado às pessoas mais necessitadas de suporte psíquico, não apenas das igrejas, mas também das próprias comunidades do seu entorno. No âmbito mais amplo, a Igreja pode ser protagonista de uma nova pedagogia pautada não mais nos princípios do nosso tempo, que confundem felicidade com posses de bens materiais, ofertando às pessoas o conceito de vida plena como algo que alcançamos quando vivemos sem faltas e sem sobras.
Na pós-pandemia deve crescer na sociedade uma busca por um estilo de vida mais sustentável, com maior contato com a natureza e a adoção de hábitos que tenham menor impacto no meio ambiente. Como a igreja pode dialogar ou responder a essa demanda da sociedade?
Timóteo Carriker – Há muitas maneiras, mas vou me deter em uma estratégia crítica: a formação dos nossos pastores. Sou pastor e sou professor de teologia em cursos para pastores e missionários. E eu sei bem que os pastores valorizam os assuntos e as ênfases que recebem na sua formação. No seminário nada se fala sobre a responsabilidade cristã de cuidar da criação de Deus. Não há nenhuma disciplina a respeito. E não faz parte das disciplinas afins. Por isso, é nada surpreendente que os líderes da igreja desconfiem do discurso da sustentabilidade. A situação é urgente. É preciso desenvolver não só uma matéria que trata do assunto dando informação a respeito das melhores descobertas científicas, bem como de que forma podemos abordar este assunto na perspectiva pastoral. E, além disto, é muito importante integrar o discurso dentro do currículo todo, isto é, em cada disciplina principal: teologia, história e prática.
José Marcos – A Igreja dispõe das ferramentas para ajudar a sociedade a mudar o seu estilo de vida radicalmente, mas, infelizmente, ela não está pronta para tal tarefa. Tal incapacidade se dá pela maneira equivocada através da qual a Igreja entende o conceito de reino de Deus e, consequentemente, como ela produz na prática a sua missão evangelizadora. Enquanto reino de Deus for compreendido com uma realidade não terrena e pós-morte, tal ajuda não virá com efetividade. Sendo assim, a igreja só poderá ajudar a sociedade a mudar seu estilo de vida quando os paradigmas de reino de Deus e de missão forem revisitados. Reino de Deus precisa ser visto com uma realidade concreta, e o plano de salvação precisa abranger a redenção de todas as esferas da vida. Depois de fazer esse dever de casa, ela estará apta para ajudar a sociedade a mudar.
*Timóteo Carriker é missionário da Igreja Presbiteriana Independente, capelão d’A Rocha Brasil e surfista nas horas vagas. Integra o Grupo de Trabalho de Teologia da campanha Renovar Nosso Mundo. É autor de “O que é Igreja Missional”, “A Visão Missionária da Bíblia” e “Teologia Bíblica da Criação” (E-book gratuito), todos publicados pela editora Ultimato.
*José Marcos estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil, Psicologia na UFPE, é pós-graduado em Fé e Política pela PUC-Rio, fundador e presidente no Instituto Solidare e autor do livro “Desculpe o transtorno, estamos mudando a igreja” (editora Esperança).
*Phelipe Reis é jornalista e colaborador de conteúdo para a Sepal.